27 de junho de 2011

carta para uma menina sem nome

Aquela noite passou rápido, no final, descansei umas 03 horas - eu e você na barriga. Esse lugar que é um escudo de todos os males do mundo. Quem dera pudéssemos ser sempre assim, um só ser inteirinho e cheio, você crescendo por dentro, sem nada saber do mundo, apenas batimentos, sono e movimento. Morena perguntou outro dia, caso eu pudesse escolher ser um animal, qual deles preferiria. Não soube responder então, mas hoje diria que seria uma canguru bem grande, percorrendo distâncias aos saltos, sempre carregando o filhote na barriga.
Acordamos com os sinos da igreja e então tivemos certeza: seu avô, aquele senhor doce e simpático, não estava mais entre os homens da terra; era recebido com repiques múltiplos e alegres em uma imensa festa no céu.
De fato, quando abrimos a janela, amanhecia o dia explodindo azul anil e amarelo ouro, cores de alegria. A cidade dormia bonita sob uma névoa branca em completo silêncio e atenção – era o primeiro dia naquele lugar, depois de muitos e muitos anos, que o povo acordaria sem a presença sólida de seu avô.
Nossa visão foi esta e foi reveladora: ele postava-se feliz em um mundo superior. Não poderia ser diferente, porque viveu uma vida boa e justa, isso descobrimos depois, ao longo daquele dia comprido e dolorido.
Quisera eu contar a história dessa vida inteirinha para você, desfiando um novelo brilhante, mas ainda não a conheço por inteiro. Prometo que recolheremos os pedaços nas memórias espalhadas de um e de outro para desvendarmos essa trama, que culminou neste dia ao qual por acaso estive presente, meio sem graça segurando a mão deste que será seu pai, chorando baixinho de saudades - muito mais por você e por sua avó do que por mim mesma.
Suas primas que hoje já são mocinhas irão contar deste homem destemido que foi seu avô, porque entre tantos feitos, conseguiu brigar e matar um jacaré que tinha 3 vezes seu tamanho. Alguma espingarda o acertou no nariz por algum motivo, por isso apresentava aquele sinal, vamos descobrir melhor. Seu pai irá contar do dia em que ele impávido, tomou uma xícara de café com sal ao invés de açúcar e não esboçou um sinal de contrariedade. Eu e Gabriela sabemos imitar uma careta bem boa dele, usada em ocasiões especiais; e ela é quem vai lhe dizer como foi que ele desistiu de ser padre, naquela tarde inconfundível onde viu sua avó passando moça e elegante na fazenda ao lado, montada de vestido amarelo na garupa de um cavalo pomposo.
Sei que algum tempo mais tarde ele subiria apressado os degraus desta casa de fazenda onde ela vivia e que está bem retratada naquela pintura do corredor. Fazia-o com hora marcada e consentida, para namorar essa moça que esperava na sala bordando impaciente, emaranhando as linhas e quase furando o dedo de ansiedade e espera, com uma criança velando o namoro no sofá ao lado.
Assim talvez tenha início a história dessa família povoada e divertida da qual você também já faz parte, sem saber. Para sua avó, ele deu de presente sete filhos bonitos e estranhamente diferentes uns dos outros, mas todos bons ao seu modo. Deu uma fazenda onde se podia dormir ao som de um regato; um casamento de 50 anos bem celebrados com padre e tudo; um amor de uma vida inteira, declarado aos quatro ventos, “compreendido e compreensivo” - como ele mesmo escreveu ainda no ano em que nasci - tendo por fim alcançado o mais belo ângulo da “curva da compreensão” que todos os casais almejam e apenas alguns poucos conseguem vislumbrar e merecer.
Que dia comprido, triste e bonito esse domingo de despedidas. Coroas de flores chegavam ininterruptamente e não houve mais espaço para acomodá-las. Eram mais de 120 delas enfeitando aquele salão imenso que se fez pequeno por conta de tantas e tantas homenagens. Foram tantas flores que ainda em um raio de 10 kilômetros podia-se sentir aquele cheiro de lírios brancos que você vai saber um dia, é sempre o perfume das últimas despedidas.
Houve uma comoção na cidade e todos os moradores movimentaram-se fervilhantes para o topo da montanha onde seu avô era velado, formando uma fila entre os assentos daquele salão, porta afora, descendo a avenida e mais ainda, aguardando pacientemente o momento de se aproximarem e despedirem-se. Todos quiseram e puderam dar adeus e prestar sentimentos para sua avó que estava muito triste, mas não perdeu a pose de rainha, mesmo por força dos acontecimentos todos.
Surpreendeu-me constatar como era querido e adorado, como recebeu gente de longe – chegando de avião, a cavalo ou peregrinando em sandálias. Até um bêbado entrou rodopiando no salão e veio respeitosamente debruçar-se sobre o corpo, murmurando entre dentes agradecimentos por causas desconhecidas, os olhos marejados.
Eu sou sempre de fora, aqui e em todo lugar, por conta de ter vivido aos saltos com meus pais, não tendo criado raízes, isso me joga no lugar de uma observadora atenta, mas enquanto tal, sempre surpreendida. De modo que me espantei com o volume de pessoas que por meio da mão de seu avô conseguiram construir casa própria, melhorando de vida e enraizando-se mais ainda na cidade natal, formando sulcos no rosto deste próprio chão.
O padre muito bem lembrou-nos de nossa finitude, unida ao nosso desejo de eternidade, manifesto concretamente em coisas como você, uma filhinha que ainda não conhecemos.
Por fim, também eu me aproximei de seu avô e pude dar um tchauzinho discreto, cochichando que descansasse merecidamente e que ficasse tranqüilo porque cuidaríamos bem de você. E que olhasse por nós todos do alto das estrelas. Assim que prometi acender-lhe velas de quando em quando para sinalizar onde estaríamos, para que não tivesse nenhum trabalho em nos localizar pelo mundo.
A saudade eterna de um ente querido é mais um castigo de uma humanidade distanciada dos deuses e quanto mais distantes estivermos deles, mais sofrida nossa existência cansada. Por isso orou-se, cantou-se e louvou-se, seguindo a voz aguda das senhoras – sempre presentes nos rituais de despedida das cidades pequenas – esses lugares onde ninguém se apressa tanto.
Apoio no braço de quem quero “escorar e ser escorada” sempre. Repara neste homem, parece-se cada dia mais com seu avô, forte e bonito, justo e bom, por dentro e por fora.
Nos enterros é onde a tristeza anda de braços dados com a beleza. Os túmulos, conforme nos aproximamos, contam histórias em sussurros e aqui todos são parentes de longa data, de um jeito ou de outro. Salvo raras exceções, as pessoas vivem até os 100 anos, como constatamos no dia anterior, na bem celebrada festa da tia Nair. Vemos que a morte e o nascimento não são pares de opostos, apenas faces de uma mesma moeda, a mais brilhante, valiosa e resplandecente de todas – nossa vida.
Tudo consumado, descansamos. Norfinha deixou pronta uma canja bem boa, daquela que conforta qualquer coração cansado. Estivemos tristes e continuamos. Acordo aos saltos de madrugada, e fico rodando a casa feito gata, mexendo nos papéis e cadernos. Repasso essa história e outros detalhes ininterruptamente, buscando um sentido para acontecimentos tão repentinos. Foram 12 dias em suspenso, onde nada mais teve importância, apenas o toque do telefone estridente e malvado. Estivemos esperando sem saber o quê, mas era a Dona Morte, linda de vestido azul, bonita, fria e implacável. Veio com bastante delicadeza, suavidade, sem dor, graças a Deus.
Entre tantos porquês sem resposta, agora esperamos a vida. Que venha vestida de esperança e generosidade.
Aguardamos assim a sua chegada.