5 de janeiro de 2011

Três vezes Alice (ou A Padaria de Alice)







Não chovia por estas bandas por longos 6 meses. O tempo estava seco e as pessoas tomavam muita água, com bastante dificuldade de respirar. Eu mesma aspirava profundo sobre o peso da barriga. No dia 23, esta quinta-feira, ainda andei bastante. Estive na USP pela manhã, trabalhando com a Ana. Ao final do expediente, ela me disse: “não sei nunca quando vou te ver de novo”, olhando enigmática para a barriga. E eu entrando de vez na 39ª semana de gravidez. No dia anterior estive na aldeia, joguei com o Alê, ganhei muitos abraços, quanta boa energia nos momentos importantes. Está tudo certo, me afirmou ele recorrentemente, mas equilibra suas energias em uma roda de fogo, porque você está precisando de mais masculino aí - o que vem a ser basicamente uma força maior para a grande hora do nascimento. Ainda almoço com a Alexandra, tanta gente no caminho, todos invocam já Nossa Senhora do Bom Parto e sua boa hora. Eu mesma iniciei este estranho diálogo com a minha barriga: “pode vir, pode nascer, venha mesmo, te esperamos, te esperamos.” Na verdade tinha medo de ultrapassar o teto das 40 semanas e ter que fazer aquele acompanhamento exaustivo e diário para saber se está tudo bem, se está tudo certo, sempre na expectativa de que, senão, anestesia, bisturi, hospital e enfermeira, roteiro perfeito de um filme de terror.
Carreguei de livros uma sacola, preparando-me para ficar mesmo em casa. O pai me fazia prometer que a partir da 39ª semana eu não iria mais dirigir, não iria mais trabalhar, não iria mais mais. Só menos menos, por isso os livros. “Pode vir, pode nascer”, repetia meu mantra internamente. Chegou a primavera, entramos no signo de libra. “Pode vir...”
Ainda de noite busquei as crianças na aula de piano, mas quase não está dando mais para dirigir. Tudo bem. O mundo é especialmente gentil com as mulheres grávidas. À beira de parir, vendedores e feirantes são solícitos, fazem descontos especiais. Que estado interessante, dizem das grávidas lá no norte. É a minha segunda gravidez, mas como não sabemos de nada desse mundo interno nosso, é como se fosse a primeira.
Acordei no meio da noite com o estouro gentil da bolsa, olhei no relógio: 2h30 da manhã, hora exata em que a lua mudava de fase – de crescente para cheia, redonda como eu. Senti o cheiro de chuva, um cheiro difícil de explicar porque não chovia há tanto tempo, um cheiro difícil de explicar para quem não está grávida. Banho demorado, acender velas, arrumar flores, postar a mesa de café da manhã, com frutas secas e também frescas, com amêndoas, com cores e aromas que combinassem entre si. Tudo muito lindo na casinha da Rua Linda. No meio da madrugada, Lico fez sua tentativa: “não quer ir para o hospital?” Não, porque tenho medo de enfermeiras com requintes de masoquismo e com síndromes diversas de poder sobre o meu corpo.
Não sou radical, nada contra cesáreas e hospitais. Mas tudo contra cesáreas desnecessárias (e o Brasil, é recordista mundial em cesáreas!!). Porque a linha divisória entre a necessidade de uma cirurgia (sete camadas de pontos, dores por 15 dias, maior incidência de depressão pós parto, ausência total de seu corpo com a anestesia, etc, etc) e a não necessidade desta (pariu, levanta, segura a criança, vai tomar banho) é uma linha tênue, tão tênue que praticamente invisível.*
Parto em casa era uma decisão tomada no escurinho de mim mesma, sem muita segurança, sem alarde e sem divulgação, mas seguindo o modelo do meu primeiro parto – em idos tempos onde eu era mais “odara”. Desta vez, pronta para ir ao hospital em qualquer eventualidade. Caso necessário, abandono meu chuveiro, minha cama, minha madeirinha, e mais ainda, eu mesma. Porque no hospital, quem manda na gente e no bebê são os outros, sempre mais entendidos do que a mãe. O pai então coitado, é relegado ao plano do “não atrapalhe por favor, se quiser assistir tem que se comportar!”. Hospital e cesárea sim senhor, se necessário for. Assim que confiei a Betina, essa militante da mulher e excelente médica, o olhar para essa necessidade. Um indicador importante: checar quantos partos normais realiza seu obstetra x quantas cesáreas, no espaço de um mês. A Betina chega a fazer 12, 14 partos em um mês. Se 1 acaba em cesárea é muito. Assim, me disponibilizei a ver como a banda toca.
A banda revelou-se extremamente afinada, por fim, com a força estranha que antecede os nascimentos. Amanheceu nublado, mas o clima era de festa. Apareceu minha querida amiga sorridente no portão de casa, veio muito preparada para ficar comigo até o final da jornada. Uma mulher e essa força. Calculou que o bebê nasceria na noite seguinte, já se organizara com seus filhos. Acorda Morena, chega a médica, descarregando equipamentos esquisitos. Lico organizou vaga na rua para todos, encheu banheira, cuidou de comprar o que faltava. “Servicinho de homem”, piscou Betina. Agito geral e as contrações, amigas e espaçadas, sem dor. A fim de não amolar tanta gente, gostaria que este trabalho de parto começasse logo e efetivamente, assim que ficamos a andar pelas ladeiras do bairro, descendo a Caiubi e subindo a Bartira e as dores começaram a se fazer mais presentes. Achei muita graça de andar a ter contrações pelas ruas, mas que passeios gostosos, olhando as casas e as plantas e achando o mundo tão lindo, este que ia nascer minha filhinha. A vizinha lá de cima da rua ainda perguntou: é para quando? “É para hoje, finalmente”, respondi, para seu estupor.
A Betina é médica obstetra, e enquanto tal, muito sabida dos processos todos da gravidez e do trabalho de parto, claro. Não deixou escapar um exame, tudo é ponto de atenção e cuidado. Mas sem exames vãos e exageros desnecessários! Agora como o trabalho decorresse tranqüilo, não solicitando sua especialidade científica, foi mesmo na experiência e sensibilidade que sua sabença me impressionou de vez. Pequenos avisos como por exemplo o fato de eu não conseguir ter contrações enquanto a casa não sossegasse, a Morena não fosse para a escola e o ar perdesse por fim aquela euforia de festa e tornasse para a seriedade que requer um trabalho. Dito e feito, assim o franco trabalho de parto começou, as dores chegaram de verdade. Enquanto eu não deixasse de lado alguns medos fundamentais e outras verdades inquestionáveis, aquela jornada não acabaria tão cedo para nós. Nós, porque dessa vez, não dei a luz sozinha. Éramos um grupo.
Supostamente, os trabalhos de parto te fazem mais forte. Ser capaz de parir uma criança é coisa que até Deus duvida. Costuma-se sair da experiência maior e melhor do que se entra. No caso específico, o trabalho de parto revelou tanta fragilidade e co-dependência! Vi-me, mais uma vez e novamente, frente a frente com o maior de todos os meus inimigos: eu mesma (sempre!). Como precisei de cada uma das pessoas que estiveram ali. A Betina obstetra, a Renata amiga, o Lico companheiro e o Cacá pediatra. Não fossem todos, Alice não teria nascido. Dependesse somente de mim... Porque o trabalho de parto levou-me para essa terra de ninguém, desoladora e triste, cheia de dor, de medo, frio e solidão. Jornada difícil de realizar. O caminho do desespero, já meu velho conhecido. De modo que as vozes na escuridão, o calor das mãos vindo deste mundo outro e distante (o fora do meu corpo) foi o que não me deixou sucumbir. O olhar de força da Renata que eu buscava quando vinha uma luz e eu abria os olhos. Os sussurros do Lico, suas poucas e certeiras palavras, seus beijos (os melhores de minha vida!). Foi pela força de seus braços que a dor cedeu e eu chorei feito criança cada vez que ele se afastou, porque as dores eram irremediavelmente mais fortes e eu não conseguia agüentá-las sozinha, sem ele. A tranqüilidade da chegada do Cacá e a força da sua mão. A força é mesmo masculina e eu precisei destas duas, do Cacá e do Lico, para definitivamente fazer com que o parto chegasse ao seu termo. Normalmente, no caso de optar pela anestesia, ela entra no final desse processo, para a expulsão. Mas entendi que é a dor que torna a expulsão real. Entranhada em mim, pela dor, a criança tinha que nascer. E vem a força, essa que a gente acha que não tem, mas descobre nessa horinha, somente ali, sem a anestesiasinha final, que tem sim, ah tem.
Alice nasceu às 5h20 em ponto daquela tarde. Levou mesmo um minuto inteiro para que seu corpo saísse todo e mergulhasse na água da banheira. Quando a vi, não agüentei, segurei-a logo, abracei-a. Procurei o Lico, mas ele estava sempre atrás de mim, sentia sua mão. Nasceu, a nossa menina, dessa vez chorei.
Ela, que apertou-se e espremeu-se como nunca. Deixou repentinamente o mundo aquático para o mundo do ar e do frio. Mas não foi virada de ponta cabeça, nem deitou-se em uma bandeja de alumínio gelado, nem mãos estranhas a examinaram, nem nunca ninguém teve pressa. Procedimentos como aspirações, injeções, verificações, aquelas de praxe e comuns, que se aplicam a todos, também outros tipos de incômodos físicos que só podem mesmo ser proporcionados no hospital, ela não conheceu. Ficou ali no me colo o tempo que quis. O tempo do não choro, o tempo do aprender a respirar devagar. O tempo de abrir seus olhos e procurar os nossos, como qualquer outro filhote faz. A gente é bicho e acha que é gente.
Anunciou a chegada de Alice aquela “chuvinha criadeira”. Levantei e fui tomar banho. O Lico saiu com Alice nos braços, o Cacá preparou o quarto da Morena. Lico foi pai pela primeira vez. Um pai que deixaram ser pai, um pai inteiro. Um pai que sem ele, não nascia. Bem ao contrário do lugar secundário e irrelevante que costumam lançar todos os pais nessa hora – nada de “espera lá fora”. Pelas mãos do maior especialista em seres pequenos que meus olhos já viram – o Cacá - Lico deu o primeiro banho e conheceu a bebê bem de perto na sua primeira hora de vida. A filha é mais dele do que nunca, todos os dias.
Tão pequena, tão perfeita, tão bonita a nossa menina. Está fora da barriga e mobiliza mais mundo do que antes, quando estava dentro. Avós viajam de longe. Tio, amigos, primos, irmãos e sobrinhos cumprem uma via sacra para conhecê-la, uma que é difícil para a gente acompanhar, cansados com tantas e tantas mudanças, a aventura de colocar uma criança no mundo. Dizem que cada criança que nasce vem com seu pãozinho debaixo do braço. É verdade, tanto que me sinto em uma padaria, nós, sob o calor das fornalhas, sentindo o perfume delicioso dos pães frescos, correndo para lá e para cá, suando em bicas porque trabalhando que nem gente grande, mas com todas as recompensas de um trabalho bem feito.
Três vezes Alice, porque nos vemos nela. Alice do pai, Alice da mãe, Alice da irmã. Bem vinda querida, sempre, porque este foi o seu primeiro nome.
* para informações sobre parto, cesáreas, etc, ver:
http://www.maternidadeativa.com.br/
http://www.partodoprincipio.com.br/
http://www.amigasdoparto.com.br/
http://neonatologiakk.blogspot.com/

9 comentários:

Anônimo disse...

Olha, Soraia Morena, tive meu primeiro filho há 26 anos. E ele nasceu assim também, parido só de mim, no trabalho do meu corpo e no impulso dele de ter que sair de mim, nas contrações que a gente, juntinho, fez pra viver. Esse é o trabalho, de mãe e filho, fundamental pra vida. E médicos e medicinas e pressas e planejamentos estão nos roubando essa passagem, que pavimenta o caminho de filhos, filhas e mães, principalment,ainda que os pais sejam cad vez mais vitais. A propriedade do parto pavimenta os movimentos para o resto da vida. E acho que temos, nós todas, a obrigação de fazer com que esse jeito real de ser seja resgatado. Por que a verdade é que nos roubaram a gestação e o parto, tornando-os mercadorias também.

Nívea

Anônimo disse...

amei! tb quero ter um bebê! e em casa! rs

Depois que virei mãe disse...

que lindo Soraia! me emocionei. Amanhã tenho a primeiro consulta com a Betina. Beijo pra vc, Morena e Alice. Cla

Anônimo disse...

Desta vez você se superou. Tudo que você escreve, sempre é perfeito, mas este texto é um relato extraído de um dos momentos mais lindos da vida de uma mulher, porém também cheio de dor física. E mesmo assim, você estava atenta a cada det...alhe, cada significado dos gestos dos seus acompanhantes, com um olhar cheio de poesia, ternura, puro amor. E como se não bastasse, mostrou que, apesar de toda esta percepção sensível, conseguiu olhar também para dentro de si, capturando a força feminina que gera e expele a vida. Lindo! Parabéns a Alice que ganhou a vida e uma mãe tão especial como você é. Grande Beijo,

Anônimo disse...

Sô, querida Sô...
Comecei a ler tuas palavras... soraia morena... fui me arrepiando, rindo, um pouco, até, chorando. lindo!
bjoca!

Anônimo disse...

Oi Sô... Oi papai, oi Alice, oi Morena!
Amiga, adorei ler o relato do parto. O meu foi cesárea, como sabes. Não era o que eu queria, queria esperar. Mas estava na 40a, tive medo, ansiedade. Eu ainda penso se fiz certo, ainda mais quando leio sobre chegadas como a da Alice, mas meu médico é tão maravilhoso, cuidadoso, segurou minha menina com tanta delicadeza, e todo mundo no hospital foi tão bom com a gente, e o pai pode estar tão pertinho dela, a toda hora (muito mais do que eu)... no final, a Juliana chegou bem feliz, calma, próxima, foi bom!!
Lembro que fiquei sabendo da gravidez da Alice na véspera, antes de ir dormir. Lembro que eu disse que ia para a maternidade mais feliz, mais ainda, e fui mesmo!
Obrigada por dividir com a gente a chegada de mais uma filhinha!
Vida longa, feliz e muita saúde para a Alice!
beijos mil, muitas saudades...

Anônimo disse...

Ainda estou muito emocionada com seu relato de parto! Que nascimento lindo o de Alice! Que linda mãe, que lindo pai, que linda irmã ela tem!
Ao ler, parece que sai de minha casa, e voltei ao dia que Alice nasceu. Passeei pelas ruas de perdizes com vcs! Aaaaa quanta alegria!
Muito muito muito obrigada por me enviar esse, que com certeza, foi um dia maravilhoso! Um beijo lotado de afeto para vcs!

ADRIANA FRIEDMANN disse...

Soraia
embora 6 meses mais tarde, ler teu vivido relato desta que é a mais maravilhosa das experiências humanas, me encheu de emoção. Nascer assim, quem dera uma mãe assim para as crianças chegarem com este amor e esta inteireza neste mundo. Lindo e um belíssimo presente para a vida dela esta tua história. O melhor que poderia oferecer-lhe depois da vida. Um beijo grande. Adriana Friedmann

Flávia Tiné disse...

Que lindo, Soraia! Emocionante!
Obrigada por dividir conosco esse momento tão especialmente emocionante.
Beijos na família toda!