17 de dezembro de 2009

Personagens fantásticos, música, dança e criança


* publicado no Livro Brincar, Um Baú de Possibilidades, 2009 / Org. Renata Meirelles e Soraia Chung Saura



foto Morena

“Admira primeiro, depois compreenderás”.
(Bachelard, A Poética do Devaneio)

“Boi, boi, boi, boi da cara preta”, cantarolava baixo no portão de minha casa, fitando atenta o boi, que por sua vez me fitava também, enigmático. Cantando e olhando, calculava a distância entre o boi e o portão. E do portão, quanto para chegar ao asfalto. Dô sempre alertava:
“Boi corre atrás de menina vestida de vermelho”.
E lá estava eu: pronta para ir à escola, tendo que cruzar o pasto para chegar ao asfalto, inteira de vestido vermelho, um boi no meio.
Dô me contava sim muitas histórias passíveis de dúvida, cozinheira carinhosa. Mas desde que a vi caminhar descalça sobre um tapete de brasas incandescentes, reafirmando sua fé por São João e Jesus, nunca mais duvidei de nada do que dizia.
Voltava para dentro de casa e me queixava do boi na estrada, mas minha mãe, bem mais pragmática, alertava para o atraso na aula.
“Bobagem”, dizia.
Entre Dô e minha mãe, entre o portão e a rua, entre o pasto e o asfalto, entre o boi e o vestido vermelho, enchendo o peito de coragem e debandando em carreira, me vi a salvo alguns metros depois, suando frio. Tornei a olhar o boi: ainda me encarava, ruminando parado no mesmo lugar, os,chifres eram enormes e assustadores.
De onde vem essa memória humana que nos faz sentir fascínio e medo pelo bicho boi? Quantos infinitos folguedos e festas há no mundo que fazem menção a esse animal? Por que os homens insistem, em todos os cantos do planeta, em brincar com esse bicho, quer seja ele boi manso dançante ou touro bravo esturrante?
Menina saltitante na festa
Se podemos afirmar que as festas das culturas tradicionais possuem uma função no mundo, a principal deve ser a de realizarmos todos, coletivamente, esse exercício mítico de nos aventurarmos em universos ancestrais, revivendo questões desafiadoras para a humanidade, latentes em todos nós: o bicho, a fera, a vida, a morte, a angústia diante do tempo que se esvai implacável, por meio do prazer na dança e na música. Nesse exercício de se paramentar, enfeitar, dançar, tocar, reviver e religar, não há quem não se encante, quem não se poste seduzido em fascínio. Isso acontece com todos os que participam dos festejos. Quem participa assistindo e quem participa fazendo, vale lembrar que participantes somos todos. Encantamento, porque as manifestações estão recheadas de sentidos, estes inenarráveis, mágicos e maravilhosos. Assim, estar criança no meio de um folguedo colorido e barulhento, repleto de máscaras, sons e cores, tendo um bicho Boi brilhante, dançante e com chifres reais, é aventura de viver em um mundo mitológico e de encantarias.
Enquanto adultos em uma dessas festas, rodamos por horas a fio, personagens imbuídos de vivência corporal plena, realizando o exercício ancestral de representar arquétipos e recriá-los à nossa imagem e semelhança, tal como deuses festivos. Mas eis que no meio desse delírio, vislumbramos bebês pequenos dormindo tranqüilos em meio à zoada de matracas, maracas, onças e pandeirões , no balanço de braços amigos. A segurança do ritmo embala esse sono, são os sons de tambores ancestrais. Parece incrível, mas dormem tranqüilos enquanto Amo e Batalhão entoam toadas “tiradas no ar”, fazendo a “terra tremer”, o nosso “batalhão de peso” .
Enquanto rodamos saltitantes, todos temos cuidado no tropeço dos seres pequenos, miniaturas do mundo, “devaneio dos que nasceram sonhadores” (Bachelard, 1988: 453), zanzando entre nossas pernas. Aprendem a andar balouçantes. Invariavelmente estão tentando ver o que é exatamente que existe dentro do boneco do Boi, conhecer seu Miolo. Estão em passos vacilantes entre fitas e penas, a desvendar os mistérios dos Caboclos de Pena, impressionados com a magnitude deste que não podemos ver os olhos. Carinho na Burrinha, montaria florida e simpática. Admiram as Índias, belas mulheres formosas, macias de penas, maravilhosamente bonitas. Mantêm distância segura dos Cazumbás imensos, que os apavoram. Desconfiam de Pais Franciscos e Catirinas, mascarados, barulhentos, debochados.
E as crianças estupefadas já nem sabem quem admiram e quem imitam. Ensaiam pequenos toques de instrumentos, livres que estão para experimentar. Aprendem porque participam de todas as atividades, olhos, ouvidos e bocas, cercados de gestos amorosos, divertem-se simplesmente entre muitas cores. São suas primeiras relações humanas, fora do espaço familiar, envolvidas em “um ritmo afetuoso e cúmplice do mundo cotidiano”. (Gusdorf, 2002: 69).
Todos que tiveram a oportunidade de vivenciar essa infância têm uma história para contar. Isabel Carvalho me diz que o que a fascinava em especial quando criança eram as fitas de cetim dos chapéus dos Vaqueiros: todas coloridas e muitas com desenhos encantadores. Ia para a Festa menina saltitante, esfuziante com uma pequena tesoura, e, na distração dos Vaqueiros bailantes, zás!, cortava pedaços dessas fitas coloridas, tesouros bordados que levava em surdina para casa. Assim decorava suas bonecas, suas casinhas, seus altares. As crianças chegam desse modo na brincadeira, às vezes andando seguras nas mãos de seus pais, tios, padrinhos e madrinhas. Às vezes chegam no colo. Nas pequenas comunidades podem freqüentar a brincadeira por conta própria. E assim permanecem entre os grandes, em um lugar comum onde ninguém se queixa de suas presenças. Atesto o valor desses espaços que podemos freqüentar juntos, espaços cada vez mais raros em sociedades separatistas e individualizadas, onde cada um tem o seu lugar: esse, ao contrário, é onde todos convivem juntos. Crianças encaradas como o que são: parte do mundo e de nossa existência.

Em cortejo, as festas chegam às escolas
Afora isso, manifestações das culturas tradicionais estão cada vez mais valorizadas atualmente. São reconhecidas e adentram o território escolar. Muito me encanta que um saber que aconteça no espaço da rua, conduzido por mestres de origem humilde, seja finalmente reconhecido nas instituições escolares. Que as nossas belas e simples danças estejam presentes nas festas juninas, ao lado das tradicionais quadrilhas do interior. No entanto, no espaço entre a beleza dessas manifestações dentro da escola e a efetiva valorização e compreensão das mesmas há mais do que um passo. Isso porque, felizmente, elas não surgiram para serem ensaiadas e apresentadas. Apareceram entre os homens para serem vividas.
Uma vivência sem palavras, que imbui a todos de valores, “valores novos, na verdade antigos, porém novos para seus olhos”. (Tião Carvalho ). Valores que passam pela celebração e por tudo que a envolve: a preparação dela e a nossa. O fazer coletivo, o silêncio, o respeito aos mais velhos, porque mais experientes. O respeito aos limites do outro. Que se processa no corpo e no prazer, que afirma na experiência que todos podem participar, independentemente de possuírem corpos perfeitos ou técnicas avançadas.
“Não ensino. Faço junto.”
Um saber que mora na simplicidade: para quem julga “complicado” aprender a tocar e dançar, já aviso: as danças populares são extensões dos nossos passos cotidianos, sem nenhum complicador. Os toques dos instrumentos, também eles, passíveis de serem apreendidos. Seria mais simples deixarmos essa simplicidade aflorar, cantando e dançando juntos, natural e constantemente. “Como você ensina?”, pergunto a Tião Carvalho, esse mestre do saber popular que já formou crianças, artistas, músicos, professores e pesquisadores. “Não ensino”, responde. “Faço junto.”
Conduzidas por quem as deixe assim viver essa experiência, as crianças se organizam, interna e externamente – as rodas se formam e se desfazem ao natural, formando coreografias agradáveis, bonitas como a vida, imperfeitas como o mundo. Reproduzem no chão o movimento das constelações dos céus – nem sempre ordenadas, mas sempre fantásticas, repletas de significados e de religação com a ancestralidade e a humanidade. Assim, as apresentações nas Festas Juninas não seriam um fim, mas a conseqüência de um processo.
Mas, em um mundo de produtos e resultados, os folguedos se configuram ainda como um fim, e a vivência e a experiência que promovem – ou seja, a produção de sentido – são relegadas a um último plano. Perdemos o essencial. Esse essencial indizível, que mora no lugar das não-palavras. O saber popular está no gesto, no olhar e no fazer, nunca na palavra. A possibilidade de vivermos como mulheres de outros tempos girando nossas saias. Ou de sermos eximínios tocadores, ou personagens fantásticos, vindos do fundo da mata e da floresta. Que seja. De qualquer modo, sujeitos do encantamento e não da técnica, apenas nos divertindo neste exercício aparentemente ingênuo, nos tornamos mais conscientes dos limites da nossa alma e do nosso corpo.
Compreendemos em profundidade nossos medos, nossas angústias, nosso viver coletivo. Reconhecemos a importância do outro, do mais velho, da criança. Tudo isso não no discurso, mas na experiência. Onde valorizamos e celebramos a nossa humanidade. Onde, de fato, nos tornamos seres humanos melhores. E não seria justamente esse o papel da educação?
Inserir uma manifestação tradicional na escola requer tato e sensibilidade. Ela deve ser convidada a entrar no território escolar com profundidade. Sem modismos. Por que foi mesmo que deixamos de cantar “Cai, cai balão, aqui na minha mão”, ou “Boi, boi, boi da cara preta” ou ainda o tão conhecido “Atirei o pau no gato?” Desconsideramos o repertório cultural por trás dessas canções, desconsideramos nosso próprio repertório infantil. Afinal, alguém conhece quem tenha soltado balão ou atirado o pau no gato por conta das músicas? Será que extinguimos aquilo com que não sabemos lidar? E quando extinguimos um repertório próprio, o que colocamos no lugar? Os sentimentos das crianças pequenas – por exemplo, o medo – deve ser exterminado ou vivenciado em histórias, músicas e personagens das culturas tradicionais brasileiras? Não seria este um dos grandes ganhos da educação aliada às culturas populares?
Surte efeito a convocação de mestres que transitam com facilidade entre o antigo e o moderno, capazes de revitalizar a tradição e inseri-la, com significado, em um contexto urbano. Dêem-lhes apenas o essencial: tempo e espaço para que possam operar em nossas crianças a produção de sentido que operam em suas comunidades. A longo prazo, vivenciam-se dramas humanos que auxiliam a estruturação de uma vida inteira. A memória ancestral pulsa latente, mesmo que não nos lembremos de vivenciá-la.

Chifres reluzentes e reais
Morena, criança bem pequena, nunca teve medo do boneco boi. Muito pelo contrário, tinha uma incansável vontade de vê-lo de novo e de novo. “Cadê boizinho?”, perguntava chorosa. “Dorme, boizinho dorme”, respondia sua mãe cansada. “Vamos ver ele dormir?”, insistia. “Vamos, vamos, respondia por fim a mãe.” E íamos bater no quartinho escuro ao qual temos acesso, onde o boneco gigante dorme coberto, em frente ao altar e junto com todas as indumentárias, caladas e sem farfalhar. “Dorme, boizinho dorme.” Carinho no boizinho, cuidado para não acordar o boizinho. Os tempos se misturam confusos, porque afetivos. Não sei ao certo dizer quando a pequena criatura se deu conta de que o nosso Boi não era real, era boneco. Mas que seus chifres eram de “Boi de verdade”. Sua relação com o bicho então mudou, teve medo, muito medo. Custava a se aproximar desse que tinha chifres de bicho. Eu dizia: “Mas é o boizinho”! Ela respondia: “Não, não, não quero passar a mão, tem chifres de verdade”. Mais crescida, essa criança, cheia de si, debochava um pouco do bicho: “Que é isso, mãe, ficar cuidando de bicho de madeira!” Eu respondia: “Não coloca ele no chão, não, menina, você sabe que não pode”. Mais tarde, no mesmo dia e no meio da festa, aparece correndo aos prantos abraçando minha cintura: “Ele correu atrás de mim, mãe, ele ia me chifrar!” “Não ia. não, filha, você conhece o Miolo, tudo e todos desta festa.” “Não, mãe, ele hoje está bravo, é dia da morte, fui fazer carinho nele e ele me deu uma carreira, ia me chifrar, ia me chifrar.”
Esconde o rosto molhado na minha saia e chora. Olho para a frente e vejo o boi, parado no meio da festa com chifres reluzentes e reais, grandes e de Boi de verdade.

Referência Bibliográfica:
- BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes. 1988.
- FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário. São Paulo: editora Zouk. 2004.
- GUSDORF, Georges. Professores para quê? São Paulo: Martins Fontes. 2003.
- SAURA, Soraia Chung. Planeta de Boieiros: culturas populares e educação de sensibilidade no imaginário do Bumba-meu-boi. Tese de doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, 2008.

Um comentário:

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