17 de dezembro de 2009

Natureza, espaço e tempo: dentro e fora da escola


* publicado no Livro: Brincar, Um Baú de Possibilidades, organizado por Renata Meirelles e Soraia Chung Saura



“Eu carrego um sertão dentro de mim,
e o mundo no qual vivo é também o sertão.
As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim.”
João Guimarães Rosa


Ouvi em Minas Gerais que para conhecer uma pessoa de verdade é bom que se dê uma volta a cavalo junto com ela. Foi em uma cavalgada que conheci Cleiton Rafael da Silva, um jovem de 17 anos compenetrado e trabalhador, cuidador de cavalos. Andávamos por morros de campo de atitudes, serras gerais, víamos do alto o mundo inteiro e a parede da Serra de São José, uma beleza de dar nó na garganta. Montados, éramos mais altos ainda. No chão, os cachorros correndo pelos campos, perseguindo siriemas. Cleiton, calado e sério, vira falador quando insisto em perguntar sobre a sua sabença: os cavalos.
Tenho visto o menino trabalhar nas baias: trata dos bichos, sabe limpar os espaços, lavar cochos. Na hora da comida e da água, corta capim, pica capim, busca serragem. Deixa os freios todos em ordem, deixa o serviço todo organizado.
Agora, vejo-o montar com maestria, cavalga um bicho imenso, lindo marrom, conversa com ele, faz “doma”, treina e mostra como anda a passo, firme na sela, segurando com as pernas. Não apeia para abrir as porteiras.
Seu cavalo sapateia, anda para trás por força dos arreios, esturra e empina, gigante rodando sobre duas patas. O menino se concentra, acompanha o movimento, fala língua do bicho, zune chicote no ar. O cavalo empina mais alto ainda, mas por fim cede ante a coragem do menino e, assim, calmo e domado, ganha seus afagos.
Segundo ele, aprendeu com Adriano Trindade, o melhor montador daquela região, a lida no trato dos animais. Andava atrás dele desde menino, aprendendo olhando, cinco anos de idade e já doido atrás dos bichos. O moço teve paciência para ensinar, bravo e educado, calado e compenetrado, gostando das coisas corretas, que tivesse compromisso. Hoje, trabalha com ele: já sabe dar remédio aos cavalos, injeção, tratar garroutilha (gripe), puxar potro no cabresto, cortar crina e arrumar pêlo. Atualmente, aprende a ferrar, batendo cravos no casco dos animais. Em concurso, anda sempre com os cavalos mais bonitos e aprendeu a atentar no juiz. Diz que falta mais experiência para deixar bicho certo na rédea – parando, virando, recuando. Também para cuidar de égua mojando.
“Tenho ainda muito que aprender”, arremata.

A escola do menino
Fazia tempo não via tanta desenvoltura na relação do homem com a natureza. Obviamente pergunto da escola: “Não gosto, escola não é para mim. Termino o ensino médio porque sou teimoso”. Por que a escola não é para este menino sabido? Ele mesmo responde – porque é inquieto, difícil de parar sentado na cadeira. E de porquê em porquê vai relatando todo um universo nosso conhecido: porque repetiu a sexta série e ficou marcado pelos professores. Porque não o tratam com respeito, então não merecem o seu. Só tem afinidade mesmo com uma professora. Esta também que gosta muito dele. História ruim da escola é o que não falta no repertório do rapaz. De assédios velados, como a perseguição e a chantagem de alguns professores, até os escancarados, como quando foi obrigado a engolir uma bola de papel que jogavam, ele e os colegas, em uma aula de português. Detesta português. Assim, de história em história, chegamos ao nosso destino. Acaba a cavalgada.
Fiz questão de conhecer o colégio: sem novidade, igual a tantos outros: quadrado, com grades, e – por que não – feio. Sabemos que essa escola não é exceção: gostam de grades e cadeados, revelando, sobretudo sua não interação com a comunidade. Poderia ser bonita e singela como toda a cidade, mas não é. Por dentro, escura, cinza e gelada. Serviam a merenda, a quadra estava trancada e os meninos se espalhavam pelo pátio, parecia até que saíam para “banho de sol”. Nada da natureza lá fora. Só instituição. Pudera o menino não gostar daqui. Ninguém gostaria.
Cleiton já aprendeu, mas por força do vício gosto de enfatizar: a natureza influencia a vida dos homens desde o início dos mundos, mas a escola se esquece dela. Como fazer para lembrar-se? O que aprender da sabedoria do menino e de comunidades tradicionais, integradas à natureza? Por que o aprendizado que possuem de nada serve neste espaço? Aonde vamos assim?

Tempo ritmado, circular e afetuoso das festividades
As culturas populares e comunidades tradicionais mantêm uma relação periódica com a vida com a qual nos desacostumamos, civilizados e institucionalizados. Atuam com a intenção de complementar homem e natureza e não de separá-lo dela. Dessa maneira, o tempo discorre cíclico como as estações, redondo, com fluidez e ritmo. O tempo é marcado por pontos para onde iremos retornar mais velhos e sábios, com dores e alegrias, padecimentos e felicidades inerentes a todos os seres humanos.
Mais objetivos e racionais, aprendemos a medir o tempo cronologicamente. Assim, ele avança em linha reta, conduzindo-nos diretamente a um fim. Menos angustiante, o tempo cíclico nos dá a segurança do ritmo neste mundo dinâmico e móvel. A possibilidade de repetir o que já se foi é mágica. A possibilidade de estar melhor em um tempo vindouro também. A vista de um mundo que gira constante, quem partiu, quem ficou, quem chegou, quem cresceu, quem morreu, quem nasceu, são reflexões de humanidade. Como os ciclos da natureza, esses anos não possuem números, pois "o que se mede não são as coisas futuras ou passadas, mas sua espera e sua recordação” .
No hemisfério norte as estações do ano imprimem de certa forma esse ritmo aos homens, demarcando o tempo e sinalizando passagens. Estas são claras e óbvias: estamos no inverno sem sair de casa ou no outono postados contemplativos e bucólicos; na primavera, faceiros ou no verão, expansivos. No hemisfério dos trópicos quem nos auxilia nesse processo de passagens da vida são as nossas festas. As que se repetem todo ano, ano após ano. Talvez por essa razão nos coloquemos mais festivos na nossa existência do que nossos colegas do outro lado do planeta.
Assim, dar significado ao tempo, acomodando-o em nossas vidas, aconchegando e assimilando nossas passagens em celebrações e rituais, alinhando-nos com a natureza, é uma das razões para que as festas estejam presentes na humanidade, nos quatro cantos do planeta, das mais diferentes formas e sob os mais diferentes pretextos. Quem há de negar sua importância? Por que deixamos, objetivos e práticos, de reconhecer as festividades, por que abrimos mão de celebrações em detrimento de outras atividades? Por conta de que viveremos isolados, sem dar sentido ao tempo e sem celebrar a vida? E por que essas festividades comunitárias raramente estão presentes no espaço da escola?
Nas culturas tradicionais, fazer festa se configura como atividade imprescindível e necessária: é obrigação com a vida, conosco, com nossas famílias, com os santos. Tanta dedicação nos preparativos, tanta disposição para os festivais atestam a importância destas atiVIDAdes, em locais onde a obrigação não está dissociada do prazer, o homem não está separado da natureza e o tempo vai de braços dados com o espaço.
Meu amigo Marcelo Gabriades explica que os gregos descrevem este nosso tempo sob três perspectivas: Cronos, com o qual estamos tão habituados, é o tempo do acontecimento medido e classificado, não por ele mesmo, mas por medidas criadas para nos auxiliar: ele controla aos berros as horas, os minutos, os segundos, os dias etc. Duas outras dimensões do tempo já nomeadas então são corriqueiramente esquecidas por nós: Aion, o não-tempo, a eternidade, dimensão temporal própria dos deuses, presentes no espaço da realização do mito; e Kairós – o tempo do coração, ou o tempo do acontecimento em si. Esse tempo do acontecimento em si está presente entre os homens e constantemente nos intriga. Com freqüência nos surpreendemos, quando desenvolvemos atividades prazerosas: “Já se passou uma hora? Já? A dança já acabou?” Nós nos desconcertamos com nossas medidas, porque Kairós tem esse espaço amoroso e afetivo, só dele. Esse tempo do acontecimento em si é mais latente nas crianças ou em quem não possui o cronômetro tão internalizado. Será mesmo que a aula de artes deve acabar em 50 minutos? Será poderíamos vez ou outra ser um pouco concessivos com Kairós e um pouco menos escravos de Cronos?
Terreiros redondos e integrados
Estando o tempo simbólico gerado no interior dos festivais lado a lado com o espaço simbólico, o local dos acontecimentos e de nossas passagens não poderia ser de outra forma: redondos como esse tempo integrado. Também muito coloridos, pois as cores traduzem movimento e animação. Assim se “armam” terreiros que no ano inteiro, Brasil afora, celebram os ciclos, esta e outras existências.
Poderemos nos postar no mundo redondos e coloridos, ou insistimos nos quadrados e cinzas?
Novas bandeirolas sinalizam que o tempo de brincar começou, acabou, que mais um ano se passou, ou que tudo se reiniciou. Como crianças solicitando sempre a mesma história, de novo, de novo e de novo, nos imbuímos de festa para transformar um percurso atarefado e sem significado em tranqüilidade, ritmo e sentido. Assim, os terreiros e quintais, espaços das celebrações, são círculos que sugerem sempre uma repetição. Decorados todo ano, para formá-los basta apenas um pouco de vontade e disposição para o trabalho coletivo. E, claro, constância e reconhecimento de sua importância na vida das pessoas. Esse reconhecimento se traduz não em palavras, mas em gestos: está no fazer e não no verbo – enfeitar, costurar, propor soluções criativas, planejar o cenário de nossas celebrações, aprender. Pensa-se no outro: no conforto e alegria dos participantes, dos visitantes. Pensa-se em deixá-la bonita, beleza alegórica, colorida e lúdica. Pensa-se em seus bons alimentos, boas músicas, para que sensibilize os sentidos e comova o coração das pessoas. Uma gama de variedade e possibilidades de criação. Uma das organizadoras de uma festa de rua, Graça Reis sinaliza este cuidado:

“Eu gosto de caprichar, fazer bem-feito, o alimento é a alma de tudo. As pessoas bem alimentadas ficam felizes. Me esforço nessa coisa do alimento da festa. Tenho cuidado, gosto de cozinhar. É muito bom receber. Fico feliz vendo as pessoas dizerem que comida gostosa, que festa bonita, fui bem recebido por todos, as meninas estão felizes, recebem sorrindo. O cuidado, o capricho. A comida, a pessoa de barriga cheia está feliz. Vai lá na sedinha comer alguma coisa. É bom poder falar isso. Não digo que a gente fica paparicando os nossos convidados, que a gente nem tem esse tempo. Mas tratamos todos bem.” [Depoimento de Graça Reis.]

Os cheiros que emanam das festas vêem da cozinha, das panelas do fogão, dos defumadores e incensos, das flores decorativas, estes que constituem a porta da intimidade originária dos vapores femininos, do farfalhar constante de saias floridas, incansáveis no trabalho de transformar a praça em ambiente acolhedor para todos que se dispuserem a estar presentes. O “gesto alimentar e o mito da comunhão alimentar” estão no compartilhar o alimento e no servir os convidados. “Cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha.”
Além de todas essas possibilidades intrincadas, dentro desse espaço constroem-se referências simbólico-espaciais como altares (para São João, por exemplo) que costumam ser o ponto culminante desses cenários, ricamente ornamentados, postados em lugares especiais, especialíssimos, nem mais para cá, nem mais para lá, entenda-se bem: tem seu lugar exato que se repete todo ano. Torna-se assim mais uma referência para o espaço do acontecimento, para as danças, para a fogueira e para onde nossos desejos e votos se direcionam. Simbolicamente é construído como uma “gruta, cripta, abóbada, colo onde se reconcebe Deus”. Canto seguro, depositário de esperanças, velas e promessas. Aconchego, de onde toda beleza emana. Contém em si a representação da duplicidade do olhar: é o local privilegiado de onde os santos assistem a toda a brincadeira; e é para lá que todos os olhares e esperanças se voltam. “O altar a gente sempre quer mais bonito, mais e mais. É para colocar o santo, estar em um lugar bem lindo, naquele cantinho de onde São João pode olhar para todo mundo feliz porque está todo mundo arrumado, porque está tudo muito bonito, colorido, cheio de vela, de renda, de flores, todo mundo olhando, feliz.” [Depoimento de Graça Reis.]
De fato, este é sempre mais bonito que o anterior, mas aprendemos: nunca do próximo que virá. Ampliamos o sentido desse espaço, antes mera praça, pequena rotatória, quadra de escola. Festa armada, pedimos licença para entrar, para passar, para fazer a festa, e em espaços sagrados nos curvamos inteiros nessa entrada invisível, encostamos mão ou cabeça no chão e pedimos: “Dá licença?” Transformamos esse chão em algo passível de ser venerado, nossa pertença a um todo maior.
Universitas
Ao contrário do que se pensa, as festas populares são passíveis de serem replicadas mesmo onde ninguém nunca tenha tido referência das mesmas, como nos mostram algumas dessas manifestações recriadas em São Paulo, em espaços de rua ou em algumas escolas . Universitas, do latim, significando círculo cujo centro está em toda parte – assim são nossos terreiros. Com estrutura arquetipal profunda, dialogando com o humano, sua memória e ancestralidade, permitem infinitos matizes, todos eles expressões do dinamismo inerente aos folguedos. Sob muitas e infinitas formas espalham-se pelo mundo. Mais ou menos sagrados, com mais ou menos rituais embutidos, a promoção de espaços, tempo e ações que se tornem significativos, seja em pequenas comunidades no interior, seja em grandes centros urbanos, dentro dos limites dos muros escolares ou fora deles, o mundo pode sempre se cobrir de papéis laminados e fitas de crepom. Concluo: a escola pode ser encantadora. Tantas o são, e por que não a maioria?
Na preparação destes espaços para a celebração, nenhum ensinamento se faz trivial. Um conhecimento que é patrimônio de todos. Tempo e espaço são confortantes, a festa depois de trabalho — muito trabalho — bem feito. Quem nunca se postou fascinado diante de arraial montado, com fogueiras e bandeirinhas tremulantes, debaixo de céu estrelado e não sentiu a integração com a comunidade planetária?
Em um mundo onde a artificialização da relação com a natureza tem se feito tão presente, o reconhecimento das festas passa também pelo reconhecimento do saber das comunidades tradicionais, extrativistas e artesanais. Sua integração com o meio está inerente nas celebrações, valorização da vida e respeito ao planeta. Muito mais do que discursar sobre estes assuntos, vivenciar as festas fazem ponte direta, na experiência, para estas reflexões.
A última vez que encontrei Cleiton, estava inquieto, o menino. Eu queria montar a cavalo, mas ele não, um tal de guardar sela, soltar os bichos no pasto, ajeitar tudo e ir para a “Quadrinha”, festa da igreja de Nossa Senhora de Fátima, em arraial distante que reuniria vaqueiros e gente das rocinhas da região, missa e forró.
Mal me deixou dar uma volta, tão ansioso estava. Mais tarde vejo-o passando montado, todo aprumado em cima de cavalo bonito, calça, camisa, chapéu e alegria, indo para a festa. Ficou um rastro de poeira dourada no ar e a esperança de que um dia, quem sabe, todos os meninos freqüentem a escola com esse mesmo empenho, capricho e felicidade estampada.


Referência Bibliográfica:
- BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes. 1988.
DURAND, Gilbert. 2002. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo. Martins Fontes.
- FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário. São Paulo: editora Zouk. 2004.
GUIMARÃES ROSA, João. 2001. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. Pág. 31.
- SAURA, Soraia Chung. Planeta de Boieiros: culturas populares e educação de sensibilidade no imaginário do Bumba-meu-boi. Tese de doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, 2008.

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