17 de novembro de 2008

Eu achava mesmo que merecia, nestes dias e afinal de contas, um presente. E os livros estavam com 50% de desconto. Literatura, pensava passeando entre as mesas. Imaginei como você gostaria de estar ali, se não estivesse viajando.

Por fim me resolvi por aquele do Dostoievski que você indicou. “Você vai adorar”, disse-me um dia, os olhos descansados, rareando. Comprei, apertei o livro contra o peito, senti uma saudade bem grande de você. Era uma sexta-feira, de uma manhã ensolarada, deve ter sido o momento exato em que você mergulhou no rio, do qual submergiu seu corpo, mas sua alma, não.

Esperava você voltar tranquilamente. Parecia que tínhamos todo tempo do mundo, nunca tivemos pressa. Como iríamos saber que você voltaria desse jeito, branco como cera, bonito como nunca, segurando enfeites yanomamis entre os braços, deitado entre flores, inexistente e inerte. Este foi meu maior choque: porque sempre estivemos tranqüilos e não tivemos pressa de nada? Agora, me despedir sem resposta, ver teu corpo baixar para a terra, tão cedo. Beijar finalmente tua família, da qual de cada um conheço um pouco a história. Eu estava com saudade e o teu mergulho no rio perdurou-a para toda minha existência.

Ontem, depois de tudo, cortei as plantas lá de casa, serviço que vc gostava de ajudar. Cortei mais do que deveria, queria que as plantas fossem infinitas para continuar cortando. Você é bobo Luigi, ir embora assim, logo agora que teríamos tempo. Aquele e-mail que você enviou antes de viajar, depositei, viajo, te ligo, conversar, saudade e eu mais boba de tudo, esperando você voltar. Inteligente, honesto e trabalhador, estava ficando tão importante. Tem presentes teus espalhados pela casa, em todos os cômodos. No fim, bebi aquela garrafa de vinho que deixou lá em casa, para celebrarmos juntos, com o abridor que me deu, inconformado. Metódico, Luigi. Nosso par de taças ficou sem sentido de existir, guardei-as no fundo do armário.

Teu trabalho vai virar livro, teu irmão perdeu o melhor amigo, os yanomamis correrão mais riscos sem você no mundo, teus pais nunca mais se recuperam e nós todos balançamos na rede da vida, um pouco mais cansados. Que você, pelo menos você, esteja em paz no universo sideral.

6 de novembro de 2008

Meninos de Rua na Rua


“Em defesa da gravidez coletiva,
pela democratização do espanto,
pela expressão criativa da razão,
pela semelhança de nossas diferenças,
pela solidariedade sensível de expressar,
pela responsabilidade social de criar”.
autor desconhecido


Lúcio Beninatti sempre morou “de favor” em um quartinho nos fundos de um barraco, na favela de Diadema. As pessoas de lá cuidavam e amavam o Frei, alegre. Julgavam, no entanto, que havia sido expulso de sua congregação, fosse ela qual fosse, porque vivia de maneira humilde, contando com a boa vontade das pessoas. Sempre de calça jeans e camiseta branca, sandálias de couro e uma cruz pendurada no pescoço, balançando no peito, o único gesto que revela sua religiosidade. No fim, acho muito divertido que fale palavrões quando a situação não anda boa para o nosso lado.

Uma das senhoras que lhe servia o jantar nos convidou a participar, muito simpática a Dona Maria, com risada solavancada. Sentamos em torno de uma mesa de toalha xadrez, na sala de sua casa, que era também a sua cozinha. Diante de um imenso prato de arroz, feijão, frango ensopado e salada, o Frei não perdeu, como nunca perde, a oportunidade de ser educativo: “Olhe Morena, D.Maria te convidou para jantar e fez este prato bem grande para você. Mas não é todo dia que ela tem almoço para os filhos, então, não desperdice a sua comida, porque é uma desfeita muito grande”. Impávida, a criança segura a colher e enfrenta o prato postado em sua frente. Estranho que não se queixe como normalmente faz: “não quero isso, não quero aquilo”. Arregala os olhos para o Frei, não ousa compartilhar de uma ação “desfeitosa”. É uma menina de nove anos, diligente. Decide por si mesma nos acompanhar no trabalho de rua, não quer ir para casa, aquela televisão chata.

Invariavelmente faz frio de noite, sempre venta na Praça da Sé e no Vale do Anhangabaú, este mundo amarelo de luz de poste, os espaços abertos, o céu distante e escuro, cachecol no pescoço. A menina está bem familiarizada com a caixa de remédios e a caixa de brinquedos, que carregamos em revezamento.
As crianças que vivem ali, diante da visão das caixas, vêm ao nosso encontro aos saltos e me lembram as crianças da escola chegando: “Oi, tia!” felicidade estampada no rosto. Bonitos, as bocas cheias de sorriso.
Sempre pergunto primeiro: “Quem está machucado e precisa de curativo?”. No entorno, uma roda se forma imediatamente. Há pequenos cortes, arranhões, feridinhas leves, machucados de criança. Com paciência, um por um, vou cuidando, limpando, passando remédio, enrolando com arte o esparadrapo. Tenho todo o tempo do mundo e quase nenhum material. Dá mais trabalho deixar tudo limpo no final. Enquanto cuido, vou dando recomendações maternais. Observando como o Frei dialoga com eles, fui aprendendo a fazer igual.
No entanto, os ferimentos especiais são aqueles não visíveis. “Cadê o machucado?”, pergunto para o pequeno que se posta à minha frente: é um menino, bate na minha cintura, agacho para olhá-lo nos olhos, bem brancos no rosto negro, longos cílios. Ele procura o machucado no corpo, rápido e agitado.
Encontra um pequeno ponto vermelho, uma cicatriz antiga, e aponta, com grandes gestos: “Está aqui!”. Aperto os olhos e não vejo machucado nenhum. Mas peço que se sente no chão da rua: “Como você se chama?” “-João”, diz. Ele tem mesmo a voz grossa de um João. “Vem, João, vou cuidar de você.” Nestes machucados inexistentes, nos demoramos mais, muito mais. Suas feridas são invisíveis, e suas dores são internas e profundas. Aprendi com o Frei e com o tempo: estes ferimentos aparecem com grande freqüência, porque junto com eles vêm os cuidados, conselhos e mertiolate, gaze e carinho. Talvez a lembrança de uma mãe distante e a memória funda de saber que também eles precisariam ser cuidados, coisa que esquecem cotidianamente, recorrentemente. O Frei sinaliza que eu aproveite o tempo para conversar, o que nem sempre é fácil. Quanto mais jovens, mais bravos e agressivos, muito porque precisam se defender com mais empenho na rua, esta casa grande, sem paredes e cheia de vento, de espaços vazios, de falsa liberdade, que os deixam vulneráveis a todos os perigos do mundo. Colocam a cabeça no meu colo somente se não tem ninguém prestando muita atenção, um momento rápido debaixo da luz do poste, enternece meu coração cansado.
Assim, ensinam de sua dignidade: João, como tantos outros, saiu de casa com 7 anos e a roupa do corpo, por conta própria e risco, optando conscienciosamente. Quem disse que há alguém no mundo que não possa ficar na rua? Porquê? Voltou para casa, mais tarde, apenas para buscar sua irmãzinha, que era menor ainda. Estufa o peito para dizer que quem cuida dela agora é ele, e que apesar de viverem nas ruas, ela não é mais constantemente maltratada. João é pequeno, mas é grande. “O machucado vai sarar”, digo para ele com segurança quando termino. Mas no fundo, não tenho tanta certeza assim.
“Às vezes, nossa fé na bondade do mundo vacila”, disse-me Tidu um dia, linda preta velha de olhos cerrados. Assim me sinto muitas vezes, olhando a vida entre os meninos nas ruas.

Com lesões mais graves, o Frei se encarrega de acompanhá-los ao hospital. E para que não sejam expulsos na porta de entrada do pronto-socorro, um adulto diz em alto e bom tom que se responsabiliza por aquela criança maltrapilha. A recepcionista, desconfiada, deixa assim que adentrem o território dos médicos. Lembro desta menina e dos seus olhos brilhando quando dissemos que iria ao médico. Quase não acreditava: “Vou ao médico?”, repetia a pergunta insistente e incansável. Quando se convenceu de que era verdade, percebeu: “Mas não posso ir assim, suja da rua”. Frei Lúcio suspirou paciente. Bem que tentou, passou em diversos estabelecimentos pedindo para usar o banheiro, mas os comerciantes, olhando uma menina de rua e um homem simples, não deixaram não. Que é dos banheiros públicos nas praças de São Paulo?
Ela, insistindo em tirar o preto do rosto. Frei Lúcio desistiu: “Vamos assim mesmo, tudo bem”. Ela retrucou: “Me espera aqui um minuto então”. Entrou no chafariz da Praça da Sé, apanhou da polícia, saiu arrastada pelos cabelos. Foi para o médico com o olho inchado e roxo, mas sem o sujo-preto no rosto, sorrindo feliz, a criança.

Nossas histórias com os meninos de rua dariam um belo livro nos dias de hoje, porque o mundo parece vê-los com olhos diferenciados e tem dificuldade de enxergar, essencialmente, o que os meninos são: crianças.
Morena, ao lado do Frei, é quem consegue dizer sem palavras que criança é criança em qualquer lugar do planeta: brinca com os meninos como se fossem colegas de escola, correndo divertida pela Praça da Sé, e já três vezes eu a levantei no ar no momento em que estava prestes a mergulhar no chafariz. Um dia, ainda pequena e de mãos dadas, em tempos em que permitiam, condescendentemente, que os meninos nadassem de fato na fonte, ela pediu, invejosa deles: a próxima vez que viermos aqui, você traz por favor meu biquíni e minha toalha?”
Hoje, anda mais resignada: observa cobri-los de noite, contar histórias, brincar, fazer curativos, gesticular no escuro da noite para os medrosos, dizendo que está tudo bem, tentando incansavelmente relembrar a todos de nossa humanidade, tão, tão esquecida nestas ruas escuras, que o Frei acredita que se pode fazer melhor a cada dia. Um trabalho sem fim, para muitas gerações. Para ela há um quê de causalidade fatalista, acha que é uma menina de sorte com uma mãe que anda a salvar meninos, ainda não entende que são eles que salvam a mãe. Costumo lacrimejar quando leio os direitos universais dos pequenos, me dói sobremaneira que se tenha tido necessidade de escrevê-los um dia. Depois, que eles efetivamente não se apliquem a todos, apesar do esforço exaustivo de muitos colegas militantes nesta área.

Quando o Frei anuncia a Estação da Luz, me despeço de Morena: lá não pode ir, vai para casa. O mundo naquelas ruas reproduz cenas de filmes B de terror e creio que criança nenhuma na face da terra devesse participar. Uma vez, arrisquei levar uma amiga com a gente e ela chorou e vomitou, inconsolável, por três dias consecutivos, lembrando das visões daquele lugar. Sempre torço os dedos e penso “não tem criança aqui, não tem criança aqui!”. Mas tem. Nas ruas escombrosas, onde os perfis se delineiam difusos, em algum canto de alguma esquina, encontramos os meninos. Já são pequenos por natureza, ali menores ainda. Os traficantes e a polícia nos deixam trabalhar sossegados, em uma relação absurdamente sustentável. Cada vez mais, no entanto, a polícia se crê superior e as coisas andam difíceis, até para o Frei, este senhor que costuma impor respeito com um relance de olhar. “Direitos Humanos”, gosto de dizer bem alto, quando resolvem mangar de seu “missionarismo”. Ali, as crianças, não querem saber de nós e avisam: não têm machucados e não querem brincar. Enquanto nos postamos em frente a eles, escondem as mãos nas costas, cheias de cachimbos: aguardam agitados a nossa saída. Um deles não agüenta, leva o cachimbo à boca, sendo duramente repreendido por um maior: “olha o respeito, olha a tia aí!”. Quando saímos, arrefeço de verdade, o menino tinha no máximo, 4 anos de idade. Enrodilho-me no braço do Frei e peço: “vamos embora, por favor, não há nada que podemos fazer aqui!” O Frei me segura, me olha firme, profético: “Filha, é no inferno que encontramos o paraíso”. De fato, alguns minutos mais tarde, um daqueles meninos pára na nossa frente e agita-se: “Tia, tio, por favor, desculpem os meus amigos, não estão em uma boa noite. A gente gosta muito que vocês venham aqui, por favor, não deixem de vir, não deixem nunca, nunca de vir aqui ver a gente”. Olho para um lado: rua escura, vultos cobertos revolvendo-se pelo chão ou vagando sem controle, atarantados. Olho para o outro: A Sala São Paulo parece, brilha mais do que de costume, as pessoas saem dos carros insulfilmados, com o pé no tapete vermelho, arrastando longos vestidos. Morena sabe que é tudo o mesmo mundo, sonhando deitada em uma cama confortável. Eu já não sei mais.