27 de junho de 2007

Quilombo


“Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam verdade maior.”
João Guimarães Rosa

Deixamos uma cidade de velhos marinheiros cansados em direção ao Quilombo, pegando ônibus em um centro rodoviário colorido e animado, mas na direção oposta aonde iam todos os turistas, viajando com nossas mochilas junto ao povo da terra, sentadas em sacas de farinha e com farelos de pão voando nos ares. As galinhas se debateram tanto durante o trajeto que acabaram por perder duas no caminho, flutuaram no vento para fora das janelas.


Antes de chegarmos não sabemos para onde vamos, mas as crianças confiam na providência divina, o que me dá segurança. Descemos no meio da estrada, o ônibus parte em uma nuvem de poeira, que desalento. Depois da curva, a igreja branca e azul de São Benedito, a pequena escola e a sede da Associação de Moradores em paredes de barro. Olhos tão alvos em rostos tão negros nos observam chegar. A Morena é meu passaporte de apresentação, meu melhor documento em terra estranha: sou mãe sim senhores desta criança que pula e acena animada por chegar. Sorrimos e eles sorriem de volta.


Jurava que um quilombo no sudeste, na beira da rodovia, em local de fácil acesso e de grande especulação imobiliária não haveria de ser como os distantes e remotos meus conhecidos do Norte. Mas os Griôs daqui – os idosos e mais sabenços – são parecidos com os de lá, sentados imponentes na porta de suas casas. Também aqui tem rio e tem roça, núcleo familiar, campinho de futebol, vendinha, muita criança correndo solta, um orgulho imenso e meu desconhecido de dizer e afirmar que aquele chão é deles de papel passado sim senhora. Banho de rio, de cachoeira, chega o fim de tarde, sou toda ouvidos. Têm leveza na hora de contar que conseguiram a titulação das terras à 08 anos, que quilombo não é terra de negro fugido, sem paradeiro (isso é mocambo), que foram 03 senhoras as fundadoras disso tudo. A estas foi dada a permissão de viver neste lugar graças a Deus e por merecimento e reconhecimento de anos de trabalho e servidão aos seus senhores, libertando-os assim um pouco do peso de suas consciências povoadas de fantasmas. Mulheres fortes e lindas, vejo em seus olhares nas fotos antigas que me mostram e hoje, nos de seus netos e bisnetos. Contam a história assim sem mais nem menos, como um causo de outros tempos, mas aos poucos vão revelando as dores de muitos anos de luta, de enganação de muitas promessas de sucessivos governantes, de como se organizaram para pagamento de doutor particular, trocando serviços por sacas de farinha que carregavam nas costas por muitos cruéis quilômetros na época em que essa estrada era apenas uma picada e ainda precisavam de querosene e sal. Alguns doutores sumiram também, mas os negros contam rindo que cada um deles hoje deve estar pagando caro cada gota de suor que seus parentes derramaram por anos a fio em vão. Mantêm assim este costume de roda em volta da fogueira, com os mais velhos pigarreando estas e outras histórias. Há com certeza as preferidas para nos contar: a assombração que aparece no quintal da Avó Adelaide, o neguinho de 03 cabeças que surge aos desavisados de repente no campinho, o Muro do Diabo que se move, a Cachoeira que pára à meia-noite. Aqui os mortos voltam para conversar com os vivos em noite que não tem estrela – contam onde esconderam dinheiro, anunciam dívidas não concluídas, e se faz de um tudo para salvar a alma de qualquer morto.


Junto com o dizer finalmente que esta terra é nossa, emendam que por aqui não se vende nem se aluga, que para viver nestas bandas só casando mesmo, tornando-se assim membro de uma grande família. Propostas não faltam à visitantes bem intencionados, bem recebidos. As crianças acolhem a Morena e as comadres a mim. Passeio com elas de dia, vamos à casa de outra comadre, que parece, não passa bem. As senhoras se encontram no meio do caminho, sem hora marcada e sem que eu consiga entender como esperam umas às outras na porta de casa com sombrinha na mão. Vão balançando as cadeiras na rodovia, alheias aos carros em alta velocidade, do mesmo jeito que se andam nas ruas de terra, cumprimentando quem vai do outro lado da pista e parando para saber notícia dos de lá. Lá era longe, andamos muito para chegar e perguntar: “D. Georgina, ouvimos falar que o pé da senhora inchou, foi o quê?” Conversam com naturalidade dos males das cobras – conhecemos esta dona sem uma perna, que na hora do veneno estava longe da Guaçatonga – árvore cuja seiva tira este mal sem remédio (analgésica e antiinflamatória, usada como emplastro em picada de cobra). Falam também de muitas crianças que morreram por outros males – Deus dá, Deus leva, mas a verdade é que se casam entre primos. Como prá Deus tudo é possível neste mundo, há também alguns casamentos entre irmãos. Quem fica por aqui é assim mesmo, mas alguns viajam para trabalhar, pegam conhecimento e afeto, casam com uns outros de outras terras e se espalham por aí afora.
A maioria da comunidade é mesmo evangélica, mas os da minha idade se lembram de rodas de batuque com pessoas de outro mundo vindo para conversar e dançar. Os desta geração, aliás, têm a mesma garra de seus pais e avós, não carregam no lombo as sacas de farinha, debatem-se na frente de um computador escrevendo projetos e falando em nome da comunidade. A Associação organiza assim oficinas de dança, confecção de instrumento, e o mais bonito: cestaria de taboa - lindos pendões que dão no brejo. Organizam reuniões abertas toda 3ª feira e realizam uma Assembléia com a comunidade mensalmente. Isso em períodos de calmaria. Divergências são discutidas até a exaustão em reuniões intermináveis de ânimos exaltados. Atendem a encontros nacionais de quilombolas, têm ampla articulação política, realizam parcerias com Universidades e outras instituições em prol da comunidade, trabalham em mutirões, porque não sabem, dizem, fazer de outro jeito. Perguntaram às crianças o que gostariam de manter neste lugar para as gerações futuras e elas responderam em uníssono: o rio. Assim, não há casas na beira do mesmo, e resultado de um intenso trabalho, todas elas têm fossa, mas por causa das comunidades de cima as águas, embora limpas, não são mais potáveis.


Flávia tem 23 anos, é a 4ª geração destas famílias, se intitula monitora e repórter comunitária da Associação, atuando junto às crianças em ações de fortalecimento da identidade. Está fazendo uma reportagem sobre este rio Carapitanga, lindo, raso, singelo e transparente, que acolhe essas crianças todas. Antigamente costumavam nele fastear, ou seja, caminhar à noite com tocha e facão, catando cascudo na toca.


Tuto me leva para conhecer o rio em locais diferenciados, onde afunda, onde arrasa, aquele perfume daquelas flores brancas que pendem sobre as águas. Me leva em picadas para conhecer a agro floresta, a quantas anda a construção do restaurante comunitário, a casa de farinha, e tudo o mais que é de bem comum. Me aponta os núcleos das 110 famílias que vivem por lá, ainda separados em clãs, conhecidos pelos nomes de suas matriarcas: pedaço da Dona Adelaide, da D. Benedita, da D. Maria das Dores e assim por diante, porque segundo ele, são as mulheres mesmo que articulam tudo e todos, sendo os homens executores do conhecimento feminino.


No fim dos dias as crianças tão deles queridas aparecem pulando as janelas, saindo de debaixo da cama, detrás da cortina e da porta, povoam nosso quarto inteiro curiosas, querem brincar com Morena – que no final, é branca, branca. Esta aprende atrapalhada que a lanterna impede sua visão no escuro, se desfaz dela para correr no campinho atrás dos vaga-lumes com todos os pequenos. Se familiariza com os insetos que habitam nosso quarto e todo o espaço sideral, já não acha que os pequenos animais olham em perseguição para sua pessoa. Larga o biquíni, o vestido, a bolsinha e corre de calcinha por aí. Tenho visões de relance dela, criança feliz, e as senhoras me tranqüilizam quando não a vejo e fico aflita, dizendo que sempre tem alguém cuidando dela. De fato, já almoçou com Constância e não vai ao rio sem adulto. Passa gritando que vai catar jambo, dar comida para os patos, arrancar mandioca da terra, catar caranguejo no mangue e numa destas me avisa cuidadosa: “mãe, se um camaleão te morder, tome água na frente dele, senão você fica doente e eu não quero”

Comunidades Rurais de Macapá - Amapá



O sol aqui arde bem cedo, faz com que as crianças pulem da cama feito pipocas. Macapá, à luz do dia, é diferente de outras capitais amazônidas: não é ostensiva, não tenta ser metrópole, sem edifícios nem shopping centers. Feiras de rua vendendo frutas e remédios misteriosos, para todos os males da humanidade, as ruas sem calçadas, as casas interioranas bem abertas, barulho enlouquecedor por todos os lados, carros desordenados, uma cidade que mostra a fronteira do país, a todo momento temos que mostrar os documentos dizendo em alto e bom tom quem achamos que somos. O Amapá, antes de ser estado (1988) era apenas território da União, como Rondônia e Roraima. Mas diferente de Rondônia, as pessoas estão aqui há muito, muito tempo, sem se importar se era um Estado ou um pedaço de chão. Os que antes aqui não estavam, vieram brigar com os franceses o direito a mais um pouco de terra, tendo nos olhos o brilho dourado da esperança de enriquecer rápido, mas ficando por aqui por puro encantamento.

O trapiche abre-nos a vista para o Rio Amazonas, gigante em movimento, cuja outra margem nem sabemos ao certo se existe. Uma estátua de São José, padroeiro da cidade, protege seus habitantes do resto do mundo inteiro, pois todos podem navegar até aqui, de um jeito ou de outro.

É a única capital do Brasil cortada pela linha do Equador. Essa linha imaginária divide a cidade em dois, e passa no centro do campo de futebol no estádio, fazendo com que os jogadores, em uma partida, troquem de hemisfério exaustivamente. De um lado do campo a água na pia do ralo gira para um lado, de outro, o inverso. Num ataque de bobeira cruzei essa linha várias vezes e me diverti beijando crianças do outro lado do planeta.

Viajando em direção ao campo, passo em muitos locais sem floresta, parecemos fugitivos no deserto, correndo a toda velocidade com cabelo no vento, levantando uma poeira senil atrás de nós. São kilômetros e kilômetros de areia maldita sob um sol escaldante. “O sertão está em toda parte”, já dizia Guimarães Rosa. São pastos, plantações, reservas de areia, de eucalipto, de pinho, todo tipo de matéria prima para todo tipo de utilidade irrelevante.

Quando a estrada finalmente atravessa um trecho de floresta madura, em pé, perdemos o semblante de alucinação, andamos mais devagar porque o mundo é melhor, ficamos bem humildes diante das poses senhoriais das árvores e da densidade do verde. O Amapá tem 51% de sua área protegida, fora as terras indígenas, o que faz deste o estado brasileiro menos desmatado na região. De qualquer forma, essa área toda está mais para o outro lado, não aqui onde estou. Aqui são 200 km de estrada, com impressão de não se estar indo a lugar algum. Adoro viajar de ônibus, sempre gostei, mas não sou mulher pra viajar sozinha de mochila nas costas em terras distantes, fico desconfiada. Em uma parada de ônibus, uma casinha no meio do nada, as pessoas tomam suco em saquinho de supermercado com um canudinho espetado no meio, depois jogam tudo no chão. Me oferecem e me falta coragem, me sinto ridícula com a garrafinha de água mineral nas mãos, me envergonho dos meus gestos do sul.

A comunidade onde trabalhamos chama-se Corre Água. É uma comunidade que surgiu na beira da estrada, da beira da estrada e para a beira da estrada, diferente das comunidades tradicionais que imaginamos cobrir toda Amazônia. Estas beiradeiras são muitas em todos os estados do Norte. A estrada passa no meio, tudo o mais gira em torno dela: a escola, o mercadinho, as crianças. Por conta disso, os moradores fitam sempre o horizonte, observam quem vem e quem vai. Para eles, somos mais uma turma dos mesmos que só passam, quase não acreditam que meu destino de viagem é aqui mesmo sim senhor. Escutam as histórias do mundo e as suas próprias são tristes, porque esqueceram de onde vieram e porque estão aqui. Para disfarçar, agregam vidas de outros lugares.

Por todo canto há costume das casas de palafita, longe das águas, da lama, dos bichos do chão, suspensa nos ares e sem paredes. Aqui, essas casas não servem mais, não são seguras o suficiente para o encontro inevitável com o pior de todos os perigos da natureza, nem sempre gentis e bem intencionados: viajantes. Estamos no caminho de tudo: da maior pororoca do Brasil, e de outras menores, mas cada qual tendo como guardiã a cabeça de uma cobra grande com olhos de sangue. Também no caminho para Calçoene, cujas praias são descomunais e com um excesso inexplicável de areia branca. Também estamos no caminho para Caiena, onde o salário mínimo tem um zero a mais, o asfalto é liso como um lago brilhante e a passagem para Paris, seja lá onde for, custa apenas 500 reais. Nesta outra terra falam patuá, língua dos que lá sempre estiveram; francês, dos colonizadores; inglês, língua universal e Chinês, pois o comércio é dominado por estes. Aqui é também caminho de Araguari, cujas ondas de pororoca atraem meninos loiros como anjos e valentes como dragões, vindos do mundo inteiro com asas nos pés para voarem sobre as ondas. O Afuá, cidade inteira de palafitas sobre as águas, de onde os moradores não descem nunca, e são silenciosos para não acordar a arraia gigante que sustenta toda a cidade. Bailique, um complexo de 38 comunidades em ilhas encantadas onde quem não tem muito bom coração facilmente se perde nos rios, que julgam ser atalhos para canto algum, e só quem tem o dom de renascer das peias pode sonhar em ter um terreno neste pedaço de chão.

Eraldina, Isoldinha, Isadora, que vida! Uma tem 4 filhos, um com cada pai que lhe apareceu na estrada e lhe prometeu cuidado. Outra foi mesmo embora com alguém, abandonando o marido com cinco filhos em escada, o menor ainda bebê de colo. A última cansou de ser repetidamente abusada e calada, encontraram-na coberta de sangue verde e olhar senil na beira do rio. Nesta comunidade, a mulher existe para trabalhar duas vezes mais do que o homem, carregando peso na barriga, fora dela, dos seres e das coisas, e seu olhar nunca pode ser maroto como é de sua natureza, mas sim triste de peia da vida e dos maridos. Nós, mulheres vindas de fora, trabalhando tanto, estamos em uma categoria um pouco só mais especial: os homens não ousam abusar tanto como abusam das que aqui sempre estiveram.

É comum terem os filhos pequenos desaparecidos, evaporando no calor do asfalto, mas não associam isso à fronteira, e sim a encantamentos de outros tempos. No mais, morrer “de corda”, pendurando estas nas árvores e fazendo uma viagem sem ar.

O único consolo parece ser um rio de água transparente, que dá nome ao lugar. Água boa é água fria, dizem por lá e concordo. Ali moram muitos peixes, são tantos que no fim do dia estão saltando pra fora d’água por falta de espaço. Os botos que olham nos olhos da gente, que quando nadamos sozinhos marinam ao nosso redor, e que se por muita maledicência da vida agradar da pessoa, pode encanta-la. Aí, só Deus pra tirar deste caminho sem volta, onde de noite se sonha com o sexo oposto e de dia se vai esvaindo em uma cor amarela, passando a andar só pela mão dos outros, até sucumbir de tristeza por uma vida que nunca pôde ser sua. Neste rio silencioso, sucuris dormem enterradas no fundo, e nas beiradas, jibóias que quanto mais crescem mais se enroscam onde estão, ficam na árvore feito enfeite de samambaia e basta olhar em seus olhos para se perder para sempre. Pode-se até querer sair deste feitiço, mas à vontade não responde o corpo, domado que está pelo que entrou-lhe através dos olhos. Assim perdido, ficamos arrodeando a cobra, chegando cada vez mais perto até levarmos o bote fatal. Ainda assim, nadamos em segurança todos os dias, de manhã, no almoço e no fim da tarde, antes dos trabalhos da noite.

Horrorizaram com a gente trabalhando de domingo, e juraram que assim íamos ficar enterradas no chão, como aconteceu com o filho de uma senhora que andava à noite sobre o rio sem se molhar. Este foi trabalhar na roça da mandioca e na hora que foi puxar uma de caule vistoso, foi puxado para baixo, ficando lá pegado por exatamente um ano, garante Seu Eulálio que viu a cena com estes olhos mesmos que eu olhava então.

Ah, mas que injustiça com esta terra sem verdade, se não lembrarmos do Seu João, o segundo morador deste lugar, que manda um abraço aos meus pais, que julga serem de bom coração numa terra de violência, que pergunta de onde vem essa garra, de tão longe em braços de menina, que o faz ter esperança na vida. E que muita injustiça se não lembrarmos toda noite dos mil e um olhos de jabuticabas que nos acompanharam atentos em todos os nossos momentos, que se penduravam na gente feito macacos em galhos, que enlouqueceram com a visão do cinema, que nos fizeram experimentar um sem fim de frutas (seriam frutas?) diferentes de tudo o que já vimos até então, que contrapondo aos olhos apáticos dos adultos, olhavam inquietantes para a mala que, por causa deles, arrumamos e enchemos de saudade. Ir embora nunca é fácil em canto nenhum. Neste aqui, em especial porque temos que deixar uns meninos e meninas, que um dia na volta, serão como estes maiores.

Comunidades rurais de Ponte Alta do Tocantins - Tocantins

Na chegada às comunidades é comum encontrarmos faixas de boas vindas. Uma delas dizia: “O Brasil precisa de mais pessoas como vocês”. Embora trabalhando até quando não trabalhamos, sinto um mal estar: “O que realmente fazemos pelo Brasil, nós aqui no sudeste?”

Palmas, capital do estado do Tocantins, foi inaugurada em 89. Projetada tal e qual Brasília, é apenas menor. A proposta é a mesma e de dentro do glamour olha-se para o lado e vêem-se as cidades satélites agregadas, tanta gente nesse mundão de Deus, e como sempre na cidade a periferia não entra para morar, entra para trabalhar. Atravessando o Estado, preparei-me para ver campos e mais campos de soja e pecuária, infernos do país, mas o que vi foram quilômetros e quilômetros de cerrado, poucos lugares na beira da estrada desmatados e pequenas vilas que surgiam no meio destes rincões, com pessoas que, me parecem, sempre estiveram aqui. O cerrado esconde surpresas indescritíveis com tantos tons de verde que parecem milagre, arrancando alegrias e surpresas súbitas. As árvores se esforçam por crescer, revoada de araras coloridas. Não se vê capim dourado nos campos afora, dizem que está acabando sendo extraído por poucos com manejo. Ainda assim encontramos quem carregue maços dourados nos braços, cor de ouro com flores nas pontas, 15,00 o kilo na temporada, 40,00 fora dela. Deste brilho enfeitiçante saem bolsas, brincos, colares, cestarias, distribuídos (de novo e como sempre) para o sudeste do Brasil.

Em Ponte Alta do Tocantins, portal do Jalapão, rumamos para a área rural, de longe a nossa preferida. Arranchamos depois de muito andar na casa da Dona França, tão receptiva, e que tem uma nuvem branca na cabeça, olhos miúdos e a pele com sulcos desse próprio chão. O senso dela está bom, anda aprumada para a Assembléia sob um enorme guarda-chuva preto que lhe serve de sombra, passando por baixo dos colchetes (cercas de arame farpado) que encontra no caminho. Embora goste de prozear bastante, escuta mal e conversa muito mais com os que já passaram para o outro mundo. Dormimos na sua sala de telhado de palha com três paredes de barro, a terceira aberta para o mundo. Mesa de madeira, nossas duas redes emparelhadas, café na caneca, lata dágua na cabeça, porta de duas bandas e o mundão lá fora. De noite uma vaca branca, bichão imenso passa prá lá e prá cá balançando a sineta que traz no pescoço, belém, belém; e de manhã as galinhas do mundo inteiro invadem o nosso aposento, fazendo uma grande algazarra a fim de acordar Dona França, que por fim levanta com sua nuvenzinha e pernas de andorinha, espalhando milho em seu terreiro e calando as bichinhas. Usa também um chicotinho para alinhar as galinhas. Tudo isso vejo naquela hora entre o dormindo e o acordado, mas quando está perto das sete por fim levantamos de vez para mais um dia de muito, muito trabalho.

Nessa terra onde ninguém chega, os professores me chamam de professora. No fim de um dia inteiro mediando produções e sistematizações, venho descendo com eles a estrada. Vou encontrar as meninas para a palestra que já montaram debaixo das mangueiras e o cinema, debaixo de um fio de lua no céu que uma estrela segura. No pé de uma igreja distante, encontro as senhoras sentadas em roda, sou convidada a participar. Aceito com muito gosto, ouvir e falar de todos os vivos e dos mortos que nos carregam. Dão-me uma boa cadeira, olho para os meus pés, estão iguais aos delas, secos de poeira vermelha na sandália, minha saia até o joelho como as delas, meu cabelo preso em coque. Me esforço nos seus vocabulários, com o sucesso de quem está aqui há dias. Elas riem das minhas falas e eu sou assim daqui, São Paulo um mundo tão distante e irreal como um filme de uma vida alheia. Nunca vou esquecer esta sensação: tudo parece estar exatamente onde deveria, inclusive eu.

Aniversário do Estado do Tocantins. 18 anos. Um lugar que, agora sei, juntou os pedaços mais esquecidos de todos os outros estados em volta: sul do Pará e do Maranhão, nordeste da Bahia, norte do Mato Grosso e de Goiás. Ergue-se assim com um pouco mais de autonomia e recursos próprios, tendo assim esse povo algo que celebrar. Dançamos em um rancho de lampiões, em meio a serestas, risadas e grupos de vivas, mas governador nenhum de canto algum sabe desta nossa festa secreta no meio do país.

Depois de tudo, todo dia, vamos ao banho. Para o banho, lanterninha mesmo, no rio. Nos primeiros Dona Maria nos acompanhava, e sua figura forte e serena, seus olhos no escuro faziam do rio um lugar apenas escuro e de água morna. Depois, a fim de não amolarmos mais ela, fomos só nós mesmo. Grande engano. Escuro de fazer medo nos olhos, com barulhos indecifráveis, não agüentamos, voltamos correndo, debandando com o cabelo eriçado, que levantava a gente do chão. Livusia é o nome que dão para este sentimento, isso que escutamos e não sabemos o que é, que atormenta a alma e faz o homem não servir para mais nada. É muito comum que aconteça mesmo com mulheres, alertaram os senhores quando nos viram com cara de quem viu fantasma.

Aliás, nós mulheres, lá na roça estamos em uma categoria toda especial: temos útero e não podemos carregar peso, o que torna a viagem e todas as outras atividades um tanto quanto mais leve. Além disso, temos olhos de jibóia, com capacidade de enfeitiçamento. Para quebrar qualquer poder de nosso olhar ou palavra, só cortando o dedo e jogando o sangue em cima é que desencanta. Somos as pessoas mais fortes do universo, capazes de suportar dores algozes por horas a fio, fazer os vaqueiros aboiarem mais rápido, aquecer qualquer coisa apenas botando a mão em cima, criar 18 filhos e mais dois particulares, se quisermos.

Esse é realmente um cantinho no mundo, nunca ninguém diferente apareceu por estas bandas. A luz elétrica chegou em agosto, e não mudou muita coisa, apenas a proza fica até mais tarde.

Na nossa modesta partida, que algazarra na comunidade, dia de festa. Os homens assam carne debaixo da mangueira, as senhoras se agitam mais que nos outros dias, suando em bicas na cozinha, fazendo milagres no fogão de duas bocas. Acabou o curso, entregamos os certificados, queridos alunos, tão entusiasmados e comprometidos, cheios de sonhos e promessas. No meio da festa meu coração sangra, por tantos diferentes motivos. O maior deles é não poder me esquecer neste canto do mundo, é agüentar a despedida, agora tão próxima. Queria sarar, mas a cura, não sei porquê e isso me deixa maluca, não posso ter. Todo mundo chora, eu também. Basicamente porque ninguém sabe até onde a gente vai na vida e se nos encontramos de novo. Dona França abraça, olhos miúdos dentro dos meus. Ela sabe, do alto de seus 84 anos, que nossas chances de reencontro são remotas. Diz que a saudade dela é maior do que a minha, porque enquanto vou para uma labuta diferenciada, consigo até disfarçar, mas ela fica nessa vida de sempre, igual a antes, igual a todo dia, igual, igual.

Comunidades da Linha Ouro Preto do Oeste, Rondônia

“Tantas vezes pensamos ter chegado. Tantas vezes é preciso ir além”.
Fernando Pessoa

Terra da Madeira Marmoré, nunca pensei ficar tão impressionada ao chegar em uma capital brasileira. Uma névoa densa de fumaça cobria toda a cidade. T-o-d-i-n-h-a. “Queimada de derrubada ou de pasto”, explica seu Batatinha, motorista que nos trouxe do aeroporto ao hotel. Diante do meu espanto acrescenta: “Estamos na época da seca, onde podemos queimar. A partir de novembro começa a chover e tudo isso passa”. Porto Velho é assim toda branca nestes dias, me debruço nas margens do Rio Madeira tentando ver a outra margem, em vão.

Achei mesmo que a fumaça que encobria a capital do estado limitar-se-ia a isso, como se “isso” não fosse muita, muita fumaça, sinal de muito, muito fogo. Descemos a BR 364, esta gigante que vem lá de Cruzeiro do Sul no Acre até Cuiabá no Mato Grosso. Atravessamos mais da metade do estado para chegar em Ouro Preto do Oeste, e durante todo este trajeto, ardência nos olhos que tentam enxergar a paisagem. A beleza aqui é casada com a tristeza, e essa viagem mudou a minha vida para sempre, irremediavelmente. Imensos campos queimados, castanheiras solitárias crucificadas no horizonte enevoado. Todo dia que trabalhamos por lá o sol apocalíptico nunca chegou no chão, bola branca no céu. A fumaça nunca se desfez. O calor foi de matar. Rondônia, de braços dados com Mato Grosso (onde se estendem quilômetros e quilômetros de campos verdes de soja) é campeã de desmatamento no Brasil.

Seria terça ou quarta ou segunda de uma semana que se perde nos dias que se misturam. Na névoa tudo vira névoa. Amanhecemos invariavelmente com o pé na estrada, caindo no poeirão da linha 203, toda dividida em lotes - hoje esturricados – pelo Incra em meados dos anos 80 aos aventureiros que vieram do sul. Rondônia tem mineiro, mato grossense, paranaense, até paulista, gaúcho e catarinense. Tudo menos rondoniense. Estes se resumem às crianças. Todas essas pessoas vieram de todas as direções até chegarem aqui e não têm medo de andar. Casais que enfrentaram a floresta, a falta de acesso e muitas outras dificuldades. Um povo cheio de história, que se lembra com saudades da mata, dos esturros de onça, dos gritos dos macacos impacientes, dos frutos suculentos e das sombras generosas; nada disso existe mais. Em meados dos anos 80 Ouro Preto não era senão uma vila esquecida no mundo, conta Marísia, que fugiu de casa aos 16 anos e veio tentar a vida aqui com um homem 27 anos mais velho do que ela. Seringa e madeira eram os negócios da época. A madeira era vendida em toras gigantescas a preços irrisórios. Aproveitavam-se apenas os imensos troncos principais, o resto era abandonado na floresta, restos estes que os madeireiros voltam hoje para buscar. Não raro assistimos a passagem de caminhões com um perfume misterioso, dói o coração ver toras imensas sendo transportadas para o nosso rico sudeste. Pergunto sempre se acham que a vida hoje está melhor ou pior. São unânimes em responder que melhorou muito por um lado – agora comunicam-se com mais facilidade uns com os outros, as distâncias estão menores, vez por outra passa um ônibus vindo de outro mundo, é possível ir à cidade, telefone mais próximo, luz elétrica e rádios que contam histórias deles e de todos os lugares. Piorou a alimentação, que antes era abundante, na floresta tudo dava e tinha muita caça. E o frescor, que saudades do frescor. Com a blusa colada no corpo, olho a fumaça e penso que essas pessoas ainda aproveitaram bem a nossa floresta. Tiraram tudo o que podiam pois assim exigia a economia, queimaram e fizeram pasto, lindo progresso racionalista empirista. Faz pena são as crianças, essas que nunca viram nem verão o mundo como outrora, estas cujos olhos brilham ao verem no cinema as imagens de outras brincando na floresta, sem nem sequer imaginar que poderiam estar ali, hoje mesmo. Faz pena, muita pena às vezes. Vai ser besta prá lá. Ô vida triste.

Entende-se assim a história de tantos jovens que vão tentar a vida no exterior. Pagam dez mil DÓLARES, dinheiro suadíssimo no pasto, (5,00 o kilo da picanha, 0,30 o litro de leite) ao coiote, homem milagroso que os leva, Deus sabe como, deste lugar a outro. Valem caminhões, travessias a pé, passar fome e sede, caixas, caminhões, qualquer coisa para se chegar lá, no paraíso do consumo e muitas vezes não chegar, com sorte voltar. Acho a novela da Globo, América, de repente tão atual! Pelo visto funciona: Ouro Preto tem sua economia girando nas altas e baixas do dólar!

Conhecer os prefeitos destas terras sempre me deixa doente. Doença moral, pior do que qualquer outra. Este aqui foi cassado pelo ministério público, comprou a liminar e voltou a seu posto. Prática comum! Como resultado de uma emboscada que sofreu quando ganhou as eleições, manca e exibe uma grande cicatriz no rosto. Considerado advogado, defendia amigos deputados no tribunal com causas duvidosas. Foram ver, não tinha diploma!

Visitamos a APA, Associação dos Produtores Alternativos. Um trabalho pequeno mas maravilhoso, deu pra soltar um suspiro de alívio, finalmente. Beneficia diretamente 200 famílias, indiretamente 600. Um povo simples, que agregou muitos outros valores além do econômico, valores sociais, ambientais e humanitários. É lindo ouvir um pequeno agricultor, que neste aspecto é gigante, discorrer sobre a qualidade de sua pequena plantação, da importância da preservação do seu espaço, da complexidade de um sistema agro florestal em relação à monocultura, da saúde de seus produtos sem agrotóxicos que não envenenam a terra, a deixam respirar e ser produtiva por muitos anos, para seus filhos e netos.

Dona Maria Joana usava uma camiseta com a foto de um homem moreno e altivo, me lembrou Che Guevara. Dizia em letras vermelhas: “O teu sangue anima a nossa luta”. Tratava-se do Pde. Ezequiel Ramin, assassinado em julho de 85. Foi mediador dos donos de terra, madeireiros, seringueiros e pequenos agricultores, defendendo veementemente os mesmos. São muitos os Che Guevaras nestas terras, muitos anônimos Chico Mendes que nunca ouvimos falar.

Entre os longos caminhos de Rondônia e Tocantins, a hora foi curta, tive um blackout e não vi mais nada deste mundo. Parei em Brasília, o médico não encontrou nada além de cansaço da vida, e eu sempre soube o que me derruba: dor na máquina que funciona embaixo do peito.

Comunidades do Alto Rio Negro, Moura, Barcelos, Amazonas

Barcelos, antigamente, (1750) era a capital do estado do Amazonas. Foi transferida para Manaus e sobrou essa cidade meiga, portuguesa, na beira do Rio Negro, o maior arquipélago de água doce do planeta, do tamanho da ilha da Grã-Bretanha, com mais de 700 ilhas envoltas por água doce. No período da seca, a partir de agosto, possui mais de 40 km de praia. Durante a época da cheia, (agora), há grandes trechos de selva submersa, barulhos de peixes misteriosos na água escura e brilhante, e os amigos botos, vermelhos, não cor-de-rosa. Estes não nadam nem respiram: bóiam. São muitos e bóiam o tempo todo, brincalhões, simpáticos.

Descemos de barco trabalhando nas pequenas comunidades do Rio. O Rio Negro é negro e o Rio Branco é branco! Que descoberta! O encontro dos dois é sereno e amigável: uma linha divisória de duas cores. O Rio Negro parece um espelho escuro, calmo como um lago. Reflete nele tudo o que nele não está: a floresta, o céu inteiro. Tanto que sempre se tem a impressão de que o barco voa entre ilhas flutuantes no céu. Isso quando não chove, ou melhor, quando não faz chuva, como dizem por lá. E faz chuva todo dia. Quando é temporal, eles chamam de banzeiro. E quando está nublado, o sol está frio. Na seca bicho de casco desova. Bicho de casco é o prato típico (tartaruga mesmo) assado, com as pernas para cima, mesa após mesa, a melhor carne do mundo, confesso entre amigos.

Do barco, depois de horas de viagem, os homens descem uma rampa. Molho os pés na água finalmente! Vou subindo a trilha bem marcada que sai da água e sobe uma pequena colina, no topo da qual, muitas pessoas me observam. Faz muito, muito tempo que não desce alguém diferente naquelas bandas. Pequenas flores na borda do caminho, quase as mesmas da minha saia, que balanço bastante, junto com o cabelo, para que ninguém tenha dúvidas de que sou mulher. A caminhada era curta, mas foi eterna. Será que podiam sentir que sou mãe, menina mulher guerreira como aquelas dali, filhos nos braços e enrolados nas pernas, desafio nas costas? Me olhavam, me olhavam. Por um triz de um momento, destes mais importantes, me lembrei de expedicionários que em primeiro contato com civilizações remotas tiveram tamanha consciência de seu espaço corporal no mundo por estarem sendo tão intensamente observados. Senti seus riscos e lamentei suas mortes. No final, olhei finalmente nos olhos dos que me olhavam. Desviaram o olhar encabulados. Sorriram.

Raimunda é menina nova, bem mais nova do que eu, um filho de 05 meses nos braços. O guri era tão fofo, sorridente, irresistível de pegar nos braços e apertar. E ela, cabocla mansa, seios fartos, generosa. Ficou me acompanhando pela vila, me mostrando casa a casa, até que chegamos na dela. Sem paredes, aberta para o mundo e para a floresta. Ela mostra tudo, naquela simplicidade e leveza dos caboclos, naquela gentileza, que hoje sei, os fazem tão vulneráveis. (escravidão branca dos piaçabeiros, exploração dos piabeiros). Lamento estar a trabalho e depois de muito ter que ir embora. Lamento por eles, velhos, mulheres, crianças e homens, que demonstram seu desejo da nossa não partida. Mas lamento muito mais por mim, subindo no barco e acenando para um povo simples, que vai ficando pequeno, vão virando pontinhos no porto (que não é porto) e somem misturados à paisagem imensa da floresta. Como se ali não houvesse tanta vida, como se não houvesse tanta história, tanta coisa para aprender. Ao som regular, cadenciado do motor do barco, seguimos viagem e a noite cai sobre o rio e a floresta.
Hoje estamos escrevendo uma singela denúncia ao ministério público, quem sabe? Por essas e por outras, muitas essas e muitas outras volto para São Paulo e me sinto um alien de um planeta distante. Trabalho até o osso para dar conta. Fiz aniversário sim, 31 anos, muita hora nessa calma. Com o desejo de mais tempo para os amigos, que são a coisa mais importante do mundo neste ano que se inicia, convido a todos para mais um batizado de um novo boi, dia 19/06 domingo. A festa acontece das 14h às 22h, vocês todos já sabem onde. Como é de dia, esperamos as crianças.

Comunidade de Santa Rosa e São Pedro, Cruzeiro do Sul - Acre

O primeiro choque térmico foi em Rio Branco: ar da amazônia, pesado e bom. De lá, Cruzeiro do Sul, o segundo maior município do Acre. Fica no extremo oeste do Brasil, região de fronteira com o Peru, cidade boa para comprar redes e mosquiteiros. E farinha de mandioca. Tem muita, com muitos tons e nomes diferentes. De lá, partimos para as comunidades rurais.

Existem mais de 22 etnias indígenas vivendo no Acre, uma delas, os katukinas. Lindos, serenos, fortes e tímidos. A primeira coisa que se nota na aldeia é o silêncio. Absoluto. E o que me choca em todas elas são as crianças: pavor dos brancos. As maiores fogem e os bebês choram quando chegamos perto. Eu tenho impressão de que não é mera coincidência. Mesmo eu, com a minha cara de tupi que até os adultos confundem, não engano os pequenos. Não falam nossa língua, nem mulheres, nem crianças e dessa vez apelei: para me comunicar usei mesmo a linguagem – como diz a Renata – universal! Dos barbantes. Deu súper-certo!

Os katukinas realizam um ritual onde tomam o cambô – liquido extraído da pele de um sapo de rio bem verdinho, um animal sagrado. Um pequeno cortinho na canela, líquido introduzido no sangue e bom, até amanhã, sendo amanhã um lugar que não existe nessa noite. Nessa comunidade indígena (e em outras também), os preceitos comunitários que tentamos sempre passar estão todos embutidos. Enquanto grupo, são absolutamente unidos, apesar de terem dividido a aldeia em 04, para melhor ocupar a terra e evitar a invasão de posseiros. O delírio de qualquer educador comunitário: ver como se escutam, como se respeitam, como respeitam os mais velhos, como decidem tudo, absolutamente tudo, comunitariamente, e como realmente tem introjetado a questão da coletividade superando a do indivíduo. Poderia ficar horas escrevendo sobre o que aprendi com eles.

Santa Rosa e São Pedro são comunidades beira de estrada, sem nenhum atrativo especial a não ser a doçura de seus habitantes. De lá, quase trouxe na mala algumas crianças lindas, como a Helenilza ou o Francisco, a primeira de apenas cinco anos, cega de um olho, cuidando da casa, dos irmãos e da mãe alcoólatra, e o segundo, espancado diariamente por um pai autoritário. A dor da malária me chocou. Três em cada quatro pessoas já pegaram a doença, algumas mais de uma vez, doença tropical, que não merece o investimento em pesquisa como os cremes rejuvenescedores...

Voar de Força Aérea Brasileira é sempre uma aventura. O avião balança, é monomotor, a gente vê a floresta de cima, mas bem de perto. A gente reza, faz o pêlo-sinal, cruza os dedos na hora do pouso, este instável, o avião vai pra lá e pra cá com o vento, parece mais uma pipa. Horas de vôo até chegar na fronteira tripla de Tabatinga (Brazil, Colômbia e Peru) Gente, o Solimões... Eu realmente queria ter palavras.

De lá voamos até Manaus, cidade grande, onde tivemos a “oportunidade” de conhecer o Hospital Tropical, referência mundial em doenças da floresta (tipo a malária, a febre amarela, e muitas outras), uma espécie de HC. Tristes com o caráter da visita, com uma grande baixa na equipe, partimos para Barcelos, no Amazonas. Voamos umas 10 horas do Acre até lá, mas nem uma vez deixei de avistar a floresta, em todos os lados, até o infinito. Passamos por pedaços intocados, nunca antes pisados. A Amazônia é nossa e é demais.